Páginas

Mostrando postagens com marcador Osvaldo Molles. Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens com marcador Osvaldo Molles. Mostrar todas as postagens

domingo, 9 de agosto de 2015

LEITURA DE DOMINGO

Ceia de burro em noite de Natal

               Osvaldo Molles
Era um burro grande. Grande e sereno. Meio assim parecido comigo, atrelado a esta carroça de lixo que é a vida, recolhendo detritos, farrapos de sentimentalismo, de recordações, de recordações...

E madrugador também, burro namorando estrelas lá no Paraíso. O Paraíso é alto. Tem um jardim lá não muito edênico. Não tem cravo, nem nardo, nem cinamomo. Mas tem um jardim que se chama praça e que dá muito asfalto na primavera. As maçãs do Paraíso custam muitos cruzeiros. E a tantos cruzeiros, qualquer pecado é inflacionário. O Paraíso não tem cobras. Tem pneumáticos, que nada têm a ver com serpentes. Áspides escravizadas a pernas que rodam e de que o mundo moderno cortou a cabeça.

Mas o burro estava ali, velho, velho, sereno, sereno, e não entendendo nada do Paraíso. Que é que é Paraíso para um burro? É um lugar cheio de luzes e de fantasmas, que passam rolando e desprendendo cheiro de gasolina. Ah... se ele pudesse, numa madrugada dessas, comer os brotinhos bem tenros do jardim! Paraíso, para o meu burro, é lugar que se faz em três paradas. É sempre longe dos canteiros verdes.

E caminhando assim pela madrugada, o burro antigo lá vai, namorando a amplidão. Que se todas aquelas estrelas fossem feitas de capim gordura, o velho atrelado à carroça de lixo sofreria mais que todo mundo, só de olhá-las sem poder comê-las... Mas estrelas são de um azul claro. E claro não tem prestígio pra burro, como o tem aquela vegetação saborosa da praça, depois da chuva.

E há sempre três paradas. Uma na esquina da Sears, outra no meio da praça que se chama Osvaldo Cruz, mas que para o burro é bem mais cruz que Osvaldo.

Entretanto, hoje há uma novidade nas paradas do Paraíso. É que ali, no meio da praça, justamente no segundo “ôhhh” do lixeiro, há uma árvore de Natal. Uma árvore de Natal de um verde novo, lembrando assim aquelas saladas de capim mimoso que o burro se acostumou a comer na distante infância de burrinho.

E, então, o burro sereno, o burro manso e nunca farto, começou, tranqüilamente, a comer a árvore de Natal. É justo, é razoável, é um bálsamo aos vinte anos que ele cruza pela mesma praça sem nunca ter tido seu prêmio. A recompensa aí está. Uma árvore de Natal deve ser um grande pitéu para um burro de fomes confusas.

Mastigar árvores de Natal é espiritualizar-se. Que gosto teria? Sei lá. Pergunte ao burro. Deve ter gosto de Papai Noel ou de lágrima de Menino Jesus.

Não me perguntem mais, porque eu não como árvores de Natal. Como um prosaico pão com queijo toda madrugada, que sempre tem gosto de estopa ou de papel almaço.

domingo, 14 de setembro de 2014

LEITURA DE DOMINGO


O assobiador e seu crime

       Osvaldo Molles
O papel carbono com formato anatômico estava esperando sua vez de se avistar com o "majorengo". Um soldado passava, imponente, segurando o fuzil pelo pescoço, como se segura um ganso morto. Na luz baça da sala, em que a atmosfera podia ser cortada a navalha, o fumo se erguia da multidão de pardos esperando destino. Ele também lá estava esperando seu destino, naquela madrugada de sábado em que a garoa andava envolvendo a treva em celofane fosco.

De repente, o delegado chegou. E começou o desfile dos culpados. Foi quando chegou a hora da "conversa" com o papel carbono:

Seu nome ?

— Zequié de Oliveira !

— Como?

— Zequié, mais a turma trata eu de Pente Fino.

E o delegado começou a indagar que é que Pente Fino estava fazendo. Nada. Ele não estava, fazendo nada, quando a “tirage” chegou e encanou ele, sem mais aviso e sem nem dar "satisfa". Foi aí que ele enfezou, puxou da "ferramenta de fazer cadáver" e queria bancar o Prestes Maia, abrindo pelo menos duas avenidas em cada cara de policial.

— Valente, hein? — disse o delegado.

Valente — ele? — não! Até que Pente Fino não tinha nada de valente. É que ele tinha sido preso de maneira desonesta. Onde é que se viu "tirage" prender gente que não está fazendo nada? Aí, se adiantou um tira e começou a explicar. Que o Pente Fino estava numa esquina das Perdizes, às duas da manhã, assobiando como um desesperado. Então, que eles acharam o assobio muito suspeito e "encanaram" mesmo.

— Mas então — discute Pente Fino — assobiar na rua é proibido? E a Constituição? A Constituição não garante a liberdade de palavra? Assobio não é um jeito que a música tem de ser palavra? Foi por isso que ele se enfezou. Que numa cidade adiantada como São Paulo, um homem não tem sequer o direito de assobiar?

Mas é que ele estava assobiando de uma maneira muito suspeita, diz o "tira".

Como suspeita? Então — emendava Pente Fino na sua linguagem de Barra Funda — "então subiá é cospiração?". Ao que ele sabia, não era. E que demais a mais, o delegado fizesse aquilo que a justiça mandava. Se achava que ele merecia ficar "guardado", para "ver o sol nascer quadrado", que fizesse isso. Mas que crime, ele não tinha cometido nenhum.

O delegado reconhecia, sim, a inocência de Pente Fino.  E, afinal de contas, assobiar não era delito. Podia ir embora em paz. Que fosse. Mas que não assobiasse mais pela rua, alta madrugada, que podia incomodar a vizinhança.

E lá se foi embora, feliz, o Pente Fino, colocando-se "sempre às ordens" do delegado e rematando toda a sua história de sábado com uma frase:


— Ah... seu dotô... Assubio é lição de violino de pobre!