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sexta-feira, 22 de novembro de 2013

MÚSICA NA SEXTA

Herivelto de Oliveira Martins nasceu no Rio de Janeiro, em 1912.

Era filho de um agente ferroviário apaixonado por teatro que costumava promover grupos teatrais amadores, nos quais fazia questão de envolver a família, principalmente os filhos.

Com três anos de idade, apresentava-se nos espetáculos promovidos pelo pai, vestindo uma casaca e recitando: "Nasci pra namorar/ Toda moça bonita que eu vejo/ Dá vontade de casar".

No início dos anos 1930, conheceu sua primeira mulher, Maria Aparecida Pereira de Mello, com quem teve dois filhos: Hélcio e Hélio. Separaram-se depois de cinco anos de convivência.

Por volta de 1936, passou a viver com a cantora Dalva de Oliveira. Em 1937, nasceu seu filho Pery, o futuro cantor Pery Ribeiro. Em 1939, casou-se oficialmente com Dalva.

Em 1947, as brigas conjugais o afastaram de Dalva. Separaram-se oficialmente em 1949, iniciando uma polêmica, inclusive musical, da qual ele participou com várias músicas, como "Cabelos brancos", muito explorada pela imprensa da época.

Herivelto compunha os próprios sambas e boleros, enquanto Dalva era apoiada por grandes nomes da cena brasileira, como Nelson Cavaquinho, Ataulfo Alves e Paulo Soledade, entre outros. A partir de 1950 foram eternizados clássicos como "Tudo Acabado", "Que Será", "Errei Sim", "Falso Amigo", "Calúnia" e "Palhaço", para citar apenas alguns.

Essa história é contada em detalhes por Pery Ribeiro e Ana Duarte, sua esposa, no livro "Minhas Duas Estrelas".

Segue abaixo trecho do livro em que Pery esclarece algumas polêmicas.

Embora tenha sido meu pai quem decidiu se separar de minha mãe e mesmo já estando há alguns anos envolvido com outra mulher, isso não significou realmente o fim de um capítulo, como se poderia esperar. Ao contrário, foi o início de muitos outros capítulos. Meu pai não estava preparado para enfrentar a realidade de que minha mãe poderia sobreviver sem ele. Ela era sua "cria". O sentimento de posse, pessoal e artística, desenvolvido por ele em relação a ela era muito grande. Afinal, eles aconteceram juntos. Cresceram juntos naqueles catorze anos.

Para usar uma expressão muito em voga hoje, a formatação da vida de Dalva e Herivelto foi feita a dois. Não dá para falar de um sem o outro. Imagino que meu pai, apesar dos conflitos, sentia isso de uma maneira muito forte. Se sentimentalmente ele já estava substituindo-a por Lurdes, artisticamente a perda era irremediável para ele. Não se encontra mais de uma Dalva de Oliveira pela vida.

Penso que ele torcia para que se tornasse verdade o que tantas vezes dissera à minha mãe, para amedrontá-la, quando brigavam:

 "Você não é nada sem mim. Eu inventei você. Não se esqueça disso, Dalva!".

Mas, apesar de toda a insegurança calcada por ele, ela tinha de enfrentar a sua estrada sozinha. E lançou, no começo de 1950, "Tudo acabado", de J. Piedade e Oswaldo Martins:

Tudo acabado entre nós
Já não há mais nada
Tudo acabado entre nós
Hoje de madrugada
Você partiu e eu fiquei
Você chorou e eu chorei
Se você volta outra vez
Eu não sei

A letra da música caía como uma luva sobre a recente separação deles. O público, identificando o momento vivido por Dalva, fez da canção o primeiro grande sucesso de minha mãe sem meu pai. E parecia, aos fãs de minha mãe, uma resposta à música "Cabelos brancos", de meu pai e Marino Pinto, lançada antes. Apesar de ter sido composta muitos anos antes da separação, com o passar do tempo, por causa de sua letra, o público foi incorporando-a na briga musical.

Devido à grande aceitação do público, a gravadora Odeon lançou outro disco com Dalva, poucos meses depois, no qual minha mãe cantava de um amigo deles e ex-parceiro de meu pai, Marino Pinto, em parceria com Mário Rossi, o bolero "Que será":

Que será
Da minha vida sem o teu amor
Da minha boca sem os beijos teus
Da minha alma sem o teu calor
Que será
Da luz difusa do abajur lilás
Se nunca mais vier a iluminar
Outras noites iguais

Outro sucesso estrondoso! Meu pai não soube enfrentar esse sucesso que minha mãe alcançava sem ele e apelou. Foi aí então que estourou a grande guerra musical, quando meu pai escreveu em parceria com David Nasser a música "Caminho certo":

Eu deixei o meu caminho certo
E a culpada foi ela
Transformava o lar na minha ausência
Em qualquer coisa
Abaixo da decência

Este samba infeliz foi o estopim para que compositores do porte de Ataulfo Alves, Marino Pinto, Oswaldo Martins, Paulo Soledade, Humberto Teixeira, Nelson Cavaquinho, Alvarenga e Ranchinho, Lourival Faissal, Guaraná etc. tomassem as dores de minha mãe e compusessem desesperadamente para dar a Dalva, com suas canções, uma resposta a Herivelto.

No mesmo ano, 1950, minha mãe gravou, de Ataulfo Alves, a música "Errei, sim":

Errei, sim
Manchei o teu nome
Mas foste tu mesmo o culpado
Deixavas-me em casa
Me trocando pela orgia
Faltando sempre com a tua companhia
Lembro-te agora
Que não é só casa e comida
Que prende por toda a vida
O coração de uma mulher

Foi tanto o sucesso de "Errei, sim" que meu pai passou a odiar Ataulfo e por pouco não chegaram às vias de fato. Aliás, iria ser engraçado, Herivelto, baixinho, e Ataulfo, com aquela altura toda. Conta-se que Ataulfo já havia composto "Errei, sim" alguns anos antes e, quando mostrou à minha mãe, ela imediatamente se identificou com a música e quis gravá-la.

A amizade desses compositores com meu pai ficou muito abalada. Ele se sentia traído por eles. Para Marino Pinto, inclusive, fez, em parceria com Benedito Lacerda, "Falso amigo":

Me trocaste por dinheiro
Eu que te considerava meu amigo verdadeiro
Aproveita
Gasta bem o que ganhaste
Eu não quero ter notícia
Que como Judas te portaste
Teus sambas são verdadeiras infâmias
Crivados só de calúnias
Contra o amigo leal
O vinho que bebeste à minha mesa
Fez revelar a beleza
Sem um disfarce sequer
Pantera de unhas encurvadas
Amigo das madrugadas
Um vagabundo qualquer

Sei que foi Marino quem lhe causou mais mágoa, pois eles eram realmente muito unidos. E, por isso mesmo, acho que acabou sendo perdoado, anos mais tarde, e ele e meu pai até voltaram a ser parceiros nos anos 60.

É importante ressaltar que toda essa polêmica musical só aconteceu devido às características do mercado musical da época. Como os discos eram de 78 rotações (aquelas bolachas pretonas), com apenas duas músicas, era costume os cantores de sucesso lançarem dois discos por ano: um no Carnaval e outro no segundo semestre.

No caso de minha mãe, a gravadora, detectando o potencial de mercado que a polêmica musical causava, passou a botar lenha na fogueira, lançando até três discos de Dalva por ano nessa época. Em contrapartida, meu pai lançava outros três discos, assim tínhamos por volta de seis lançamentos deles ao ano, o que mostra que a cada dois meses havia uma música nova para o público adotar e abastecer o clima de guerra entre eles.

O conflito musical continuava. Meu pai revidou a música de Ataulfo com o samba "Teu exemplo":

Há muita gente
Que encontra estrelas
Na própria lama
E junta um buquê de flores
Do mal que soube causar
Há muita gente
Que a glória arranca
Do próprio drama
E da tragédia da vida
Motivos para viver
E quando erra proclama
E quando peca sorri

Marino Pinto e Paulo Soledade, no começo de 1951, deram a Dalva uma resposta forte, "Calúnia":

Quiseste ofuscar minha fama
E até jogar-me na lama
Só porque eu vivo a brilhar
Sim, mostraste ser invejoso
Viraste até mentiroso
Só para caluniar
Deixa a calúnia de lado
Que ela a mim não afeta
Deixa a calúnia de lado
Se de fato és poeta
Se me ofendes
Tu serás o ofendido
Pois quem com ferro fere
Com ferro será ferido

Nesse mesmo ano, Herivelto, em parceria com Benedito Lacerda, lança "Consulta o teu travesseiro":

Consulta o teu travesseiro
E me diz se é possível
Entre nós uma reconciliação

E, também em parceria com Benedito, "Não tem mais jeito":

Não tem mais jeito
Mulher quando perde
A vergonha e o respeito
Não tem mais jeito

Para enfrentar mais esses ataques, minha mãe ganha de Nelson Cavaquinho e Oswaldo Martins o samba "Palhaço", uma sutil ironia à antiga profissão de meu pai:

Sei que é doloroso um palhaço
Se afastar do palco por alguém
Volta que a plateia te reclama
Sei que choras, palhaço,
Por alguém que não te ama
Enxuga os olhos e me dá um abraço
Não te esqueças que és um palhaço
Faça a plateia gargalhar
Um palhaço não deve chorar

Recém-chegada de Londres, Dalva lança, do disco gravado com o maestro Roberto Ingles, outra música de Ataulfo Alves, "Fim de comédia":

Esse amor quase tragédia
Que me fez um grande mal
Felizmente essa comédia
Vai chegando ao seu final
Já paguei todos os pecados meus
O meu pranto já caiu demais
Só lhe peço pelo amor de Deus
Deixa-me viver em paz
Não quero me fazer de inocente
Porém não sou tão má
Como disseram por aí
Eu quero o meu sossego tão somente
Cada um trate de si

Foi um tremendo sucesso. E, para encerrar o ano de 1951, minha mãe grava, de Luís Bittencourt e Marlene, "A grande verdade":

Vai
Não te posso prender
Não te posso obrigar
A mentir se não queres ficar
Não convém insistir
Não convém iludir
Pra mais tarde sofrer
Não me tens amizade
Esta é a grande verdade
Por isso não vejo razão
Para a nossa união, meu amor
Sonho quimera ilusão
Tudo vai terminar
Quando um dia o remorso chegar
E da felicidade existir a saudade
No teu coração
Verás então ao teu lado
Meu vulto meio apagado
Revivendo um amor desesperado

 Meu pai ataca outra vez, agora em parceria com Raul Sampaio, que entrara para o Trio de Ouro, com a música "Perdoar":

Perdoar
Eu não perdoo, não
Eu estou cada vez mais convencido
De que aquela mulher
Ai, ai, meu Deus
É um caso perdido
Vem arrependida implorar perdão
Falta, erra e por fim
Ainda confessa, errei, sim

Já no começo de 1952, depois do Carnaval, Dalva lança de Armando Cavalcanti e Klecius Caldas, que anos depois se tornaria parceiro de Herivelto, "Poeira do chão":

O que te dei em carinho
Tu devolveste em traição
O que era um claro caminho
Tornaste desolação
Hoje tu voltas chorando
Para implorar o meu perdão
O meu perdão nada custa
Falando a palavra justa
Há muito eu te perdoei
E por amar a verdade
Vendo tanta falsidade
No fundo eu te lastimei
Se é falso e vil o interesse
O amor bem cedo fenece
É flor que morre em botão
Não, não pode alcançar os astros
Quem leva a vida de rastros
Quem é poeira do chão

Do lado de minha mãe, eram muitos compositores trabalhando para enfrentar meu pai. Mas, aos poucos, a polêmica musical foi esfriando e os ataques foram se espaçando, dando lugar a sucessos como "Kalu" e "Ai, Ioiô", na voz de Dalva, e, no repertório de meu pai, aos tangos como "Carlos Gardel" e "Hoje quem paga sou eu", gravados por Nelson Gonçalves.

Todos esses ataques musicais de meu pai a minha mãe foram criando uma grande animosidade em torno dele. O povo realmente considerava minha mãe uma pessoa desprotegida e vítima dele. Para botar mais pimenta ainda nesse caldo, não satisfeito com o bate-boca musical (minha mãe fazia muito mais sucesso com as músicas do que ele), Herivelto aceita a infeliz sugestão do jornalista David Nasser para usar um espaço no Diário da Noite para se "defender" de Dalva, dando sua versão da vida a dois com ela.

Junto com David Nasser, meu pai começa a publicar no início de 1951 uma série de artigos diários (foram 22 capítulos ditados por ele e escritos por David) durante cinco semanas. Ele não poupou palavras nem desrespeito por aquela que foi sua companheira, mãe de seus dois filhos, e lhe deu suporte profissional durante mais de catorze anos.
 Cabelos Brancos

 Herivelto Martins
 Não falem desta mulher perto de mim
 Não falem pra não lembrar minha dor
 Já fui moço, já gozei a mocidade
 Se me lembro dela me dá saudade
 Por ela vivo aos trancos e barrancos
 Respeitem ao menos os meus cabelos brancos
 Ninguém viveu a vida que eu vivi
 Ninguém sofreu na vida o que eu sofri
 As lágrimas sentidas
 Os meus sorrisos francos
 Refletem-se hoje em dia
 Nos meus cabelos brancos
 E agora em homenagem ao meu fim
 Não falem desta mulher perto de mim

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