Páginas

domingo, 18 de outubro de 2015

LEITURA DE DOMINGO

Gaúchos e cariocas 

        Luis Fernando Veríssimo
É preciso dizer que estávamos naquela brumosa terra de ninguém, que fica depois do décimo ou do 15º chope. Tão brumosa que não dá mais para distinguir entre o décimo e o 15º. 

Tínhamos sido apresentados no começo da noite mas já éramos amigos de infância. Em poucas horas nossa amizade passara por vários estágios, desde o “leste o livro do Chico?”, até as piores confidências, e agora nos comportávamos como confrades, como se nossa amizade fosse mais antiga que nós mesmos. Isto é, estávamos brigando. 

– Vocês, gaúchos… 

– O que é que tem gaúcho? 

– Pra mim gaúcho é tudo veado. 

– Não radicaliza. 

– Se tem que dizer que é macho, é porque não é. 

– Lá no sul se diz que numa briga de gaúcho, paulista, mineiro e carioca, o gaúcho bate, o paulista apanha e o mineiro aparta. 

– E o carioca? 

– Fugiu. 

– Viu só? Pensam que são mais machos que os outros. Diz que as bichas de Paris protestaram porque as bichas cariocas estavam invadindo o seu mercado: “Voltem para o Rio. Go home!”. Aí as bichas cariocas reagiram: “Ah, é? Então tirem as gaúchas de lá.” 

– Está aí, fugiram. Mas isso tudo é mágoa porque são os gaúchos que mandam neste país. Vocês estão assim desde que nós amarramos os cavalos ali no obelisco. 

– Aliás, essa fixação no obelisco… 

– Gaúcho é o único brasileiro sério. 

– Sem graça não é sério. 

– Só o gaúcho fala português. Essa língua de vocês não existe. Paulista põe “i” onde não têm. Você falam chiando. Onde tem um “r” botam dois e onde tem dois botam quatro.

-Vocês falam espanhol errado e pensam que é português! 

– Mas o que a gente diz é pra valer. Não é como carioca que diz uma coisa e quer dizer outra.

 – Ah, é? 

– É. Quando carioca encontra alguém e diz: “Meu querido!”, quer dizer que não se lembra do nome. “Precisamos nos ver” quer dizer “está combinado, eu não procuro você e você não me procura”. 

– O que vocês não aguentam é que nós, cariocas, somos meu ip informais, bem-humorados… 

– Isso é mito. Entra num “Grajaú-Leblon” lotado na Nossa Senhora de Copacabana, às três da tarde, no verão, que eu quero ver o bom humor.

 – Não radicaliza. 

– Os mitos cariocas. O Zico, por exemplo… 

– Eu sabia. Eu sabia que ia chegar no Zico! 

– O Zico é uma entidade abstrata criada pelo inconsciente coletivo do Maracanã.

 – O Campeão do Mundo. Campeão do Mundo! 

– Porque não entrou um inglês no calcanhar dele. Se encosta um, o Zico cai. 

– É. O bom é o Batista. 

– Não troco um Batista por dois Zicos. 

– Ai, meu Deus. Ai, meu Deus!

 – Outra coisa: mulher. 

– Claro. Mulher. A mulher carioca não vale nada. 

– Vale. Mas é sempre da mesma cor. Mulher tem que ir mudando de cor com as estações. Quando chega o verão, as gaúchas vão tostando aos poucos, como carne num braseiro de chão, até estar no ponto. Só ficam prontas mesmo em fevereiro. A carioca está sempre bem passada. É como comer churrasco em bandeja. 

– É. A medida de todas as coisas, para o gaúcho, é o churrasco. A comida mais sem imaginação que existe. 

– Vai dizer que comida é isto que vocês comem aqui? 

– Mas bá. 

Eu estava levando o chope à boca e parei. 

– O que foi que você disse? 

– Eu? Nada. 

– Você disse “mas bá”. 

– Não disse. 

– Disse. Eu ouvi nitidamente um “mas bá”. 

– Está bem. Eu disse. 

– De onde você é? 

– Dom Pedrito. 

Estava no Rio há menos de dois anos e chiava como uma locomotiva no cio. Mas não me senti triunfante. Me senti derrotado. Eu estranhara ele não ter dito: “Se você gosta tão pouco do Rio, o que é que está fazendo aqui?”. Eu não poderia responder a não ser com a verdade, que era fascinado pelo Rio. Uma característica de gaúcho é que gaúcho é fascinado pelo Rio. E ali estava ele como prova que depois do fascínio vinha a rendição, a vitória carioca. Acabou a discussão. Nos despedimos e saímos, cada um cambaleando para um lado. Na saída ele ainda disse: 

– Precisamos nos ver…

Nenhum comentário:

Postar um comentário