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terça-feira, 22 de outubro de 2013

PESSOAS PÚBLICAS, INTIMIDADE E HISTÓRIA

Primo manda para o TOA texto sobre o assunto das biografias.

Acompanho de perto, bem de perto, todos os desdobramentos do debate sobre a censura às biografias que está rolando. Um artigo do Código Civil colide com outro da Constituição. Pausa – sim é necessária uma pausa: o leitor há de perguntar: Como assim colide? Quando os caras escreveram o Código Civil eles não leram a Constituição??? Se eu fosse um grande colunista, tendo às minhas costas um grande veículo midiático, eu daria a resposta. Mas como sou um Zé-Ninguém, me detenho na perplexidade: Puxa, como eles conseguiram isto né????

A colisão ocorre porque a Constituição garante o direito à livre expressão (salvaguardado o direito de recorrer à justiça em caso de difamação etc.) e o Código Civil não permite que sejam feitas biografias que ofendam alguém (isto é redundante, pois existe o direito consagrado de ir à justiça) ou que haja ganho pecuniário com a publicação. Ora, sabemos todos que é impossível o exercício literário profissional sem ganho. Logo, pelo Código Civil, ficam inviabilizadas (como na verdade estão) quaisquer publicações com cunho biográfico.

O que significa a expressão “publicações com cunho biográfico”? O leitor há de se espantar com a pergunta, pois vivemos num país em que artistas ligam para os paparazis e avisam que estarão no lugar tal e tal a tal hora. Vivemos num país em que pessoas narram todo o seu emocionante diário pelo twitter e facebook. Ou seja: vivemos num país que não dá a mínima para a privacidade. Mas eu insisto na pergunta, apesar disso tudo.

Você escreve uma história, por exemplo, do Getúlio Vargas. Ora, não é possível escrever sobre o Getúlio sem simultaneamente escrever sobre ao menos mais umas 800 pessoas. Pois bem: o historiador que quiser escrever esse livro deverá, portanto, pedir a autorização destas 800 pessoas (ou de seus descendentes)!!! A história fica, portanto, inviabilizada.

(Evidentemente, o leitor pode dizer que não liga para a história. É um direito do leitor e ponto final. Apenas recomendo ao leitor, neste caso, que leia ou assista  o 1984 do Orwell, para ver as consequências de não ter história. Ah – não ter história significa que a qualquer momento aquele documentinho que tá num cartório e que atesta que você é proprietário de um terreno pode sumir, sabia??? Num sentido que os liberais não exploraram, a noção de propriedade precisa da noção de história. Mas isso é outro assunto e não quero cansar o leitor e a paciência generosa dos autores deste belo e democrático blog.)

É disso então que se fala. Da história. 

Bom, não é assim que vê as coisas o compositor e escritor Chico Buarque de Holanda. Para ele, a questão diz respeito à privacidade, o que pode ser conferido pelo link http://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2013/10/1358065-o-cidadao-tem-direito-a-nao-querer-ser-biografado-diz-chico-buarque.shtml.   

Em um certo momento da entrevista, ele assim argumenta: “Se for levar isso ao extremo, o sujeito é obrigado a deixar invadirem sua casa, fazerem fotografias [dele] de cueca, exporem sua mulher em trajes mínimos, sem poder recorrer”.

Algumas pessoas consideram o Chico Buarque de Holanda um intelectual. Não estou entre estas pessoas, e seria impossível que estivesse pois nunca parei para ouvir suas músicas (obviamente conheço alguma coisa pelo rádio) e nunca peguei em um livro por ele escrito. Mas eu não o considero um intelectual em função de um outro critério, que para mim é o ponto de partida para eu verificar se o sujeito é ou não um intelectual: o compromisso com aquilo que ele diz. 

Por este critério, o intelectual é sempre e inexoravelmente figura pública – e ele, até o último suspiro de sua vida, responde por aquilo que disse. Agora, não há problema alguma se ele num certo momento defende a posição X e depois sustenta o contrário. Mas ele precisa se justificar. Evidentemente, todos têm o direito de defender a posição X e depois cair fora – mas só o intelectual precisa se justificar. 

Chico Buarque de Hollanda usa seu direito individual de se manifestar quando quiser e de não se justificar (defendo até a morte este seu direito). Contudo, este uso não é compatível com a ideia de que seja um intelectual. Ao que me consta, isto foi atribuído a ele, e é claro que ele pode usar seu direito de não dizer “eu não sou o que vocês pensam que eu sou”. E eu não o acompanho pelas feiras literárias, shows etc., mas se é verdade que a fama de intelectual foi atribuída a ele independente de sua vontade, tenho absoluta certeza de que ele se comporta como um não intelectual (no sentido que eu atribuí ao termo “intelectual”).

Bom, mesmo ele não sendo um intelectual (no sentido que eu atribuí ao termo “intelectual”), ele se expressa, como na entrevista acima linkada. E se ele se expressa, a gente comenta (aproveitando que ainda vivemos em liberdade). Vejamos o que ele diz: ele diz que as pessoas seriam “obrigadas” a deixar os outros entrarem na casa da gente e ver a gente de cuecas etc. Bom, aqui começo a perceber que na verdade fui generoso, e que o Chico Buarque de Hollanda não é intelectual não apenas na postura, mas também no conteúdo. Eu não sei em que tipo de país o Chico Buarque de Hollanda está a pensar. Quando ele diz isso, me vem à mente Síria, China e Rússia – três países nos quais as biografias precisam ser autorizadas para circular (isso mesmo – conversar com todas as 800 pessoas para poder contar alguns anos da história do Brasil). 

Mas é claro que ele não pode estar pensando no Brasil – que possui o direito à propriedade bem delimitado (a residência é inviolável). Em suma: no Brasil, não se pode invadir a casa de ninguém. Ou seja: o que ele disse não faz o menor sentido, do ponto de vista jurídico. Aliás, se ele está preocupado com isso, e se ele esclarecer por que está preocupado com isso, eu o ouvirei com toda atenção, pois essa preocupação eu partilharia com ele (imagine se as pessoas possam começar a invadir nossas casas – estou falando sério, não é brincadeira).


Por outro lado, considero o Caetano Veloso um intelectual, em todos os sentidos. Admiro sua postura intelectual. Admiro sua garra de debater até os 45 do segundo tempo. Em geral (mas nem sempre), é um equivocado. Mas nunca se recusa a debater – e há alguns domingos escreve na sua coluna dominical no Globo defendendo o Código Civil no que diz respeito às biografias. E eu não me espantaria que de uma hora para outra mudasse de opinião. É assim que faz um intelectual, é assim que ele opera. No mar desordenado das opiniões, dos textos clássicos (Caetano Veloso é um grande leitor de uma consolidada tradição sociológica e filosófica alemã), dos debates – bom, no meio disso tudo, o intelectual procura o que ele considera o mais sensato. Tenho certeza de que ele é assim. Considero todos os argumentos que ele expôs em suas colunas muito fracos. Mas Caetano Veloso responde por tudo, a qualquer hora. Tem minha admiração. (Ah – também não conheço nada da obra do Caetano Veloso; só o que ouvi no rádio.)

Para o Caetano Veloso, há uma distinção entre ele (que não pode ser biografado sem sua autorização) e um político (este poderia ser biografo sem autorização). Pode ser acessado em http://oglobo.globo.com/cultura/cordial-10348401. 

A questão das biografias não autorizadas suscita, então, o debate a respeito da distinção entre figura pública e privada. Não se espantem – no modelo mais próximo do que chamaríamos um país de livre (até pelo menos 10 de setembro de 2001), os Estados Unidos, este debate se formatou apenas na década de 70 (o filme do Milos Forman, sobre a vida do dono da Hustler, quase ao final retrata uma caso interessante): ou seja, o debate não tá na hora errada no Brasil, um país que ainda não tem rede esgoto para todo mundo (ainda que cada brasileiro tenha o seu celular).

Na década de 80, nos debates adolescentes, uma vez disse uma bobagem: que o baterista dos Engenheiros do Hawaii era melhor do que o baterista do Deep Purple, o antológico e imortal Ian Paice (se eu for para o inferno é por causa desta frase ...). Tirando os presentes à mesa naquele dia, alguém se interessa por isso??? Não. E por que não??? Não é pelo conteúdo que foi expressado, mas pela pessoa que expressou essa idiotice. Eu não existo, né???? Existo para meus amigos, não para o público. Mas tire a frase de mim e imagine que ela tivesse sido dito por algum grande roqueiro. Daria manchete de revista de música.

Quando as pessoas se tornam públicas (no sentido lato, não vamos aprofundar aqui a semântica envolvida na discussão), elas se tornam passíveis de serem registradas, por exemplo, por suas declarações. E de serem, por sua importância, historiadas e objetos de histórias relacionadas. E mais do que isso: se elas são parte da história de um país, elas são sim parte de nossos registros históricos.

Vale também lembrar uma outra importante distinção: história e fofoca (ou falsidade grosseira). Nenhum historiador (ou biógrafo) que se preze escreve uma única linha para a qual ele não tenha justificativa caso chamado ao debate público. Um exemplo real: um grande cientista escreveu os detalhes de sua descoberta científica. E disse que começou a pensar no assunto no ano tal (ele queria sugerir que pensava no assunto antes de todo mundo etc.). Um historiador achou que a afirmação não era verdadeira. O que ele fez? Escreveu o contrário? Sim. Mas para escrever isto, pegou um avião, foi até a biblioteca da universidade na qual o grande cientista havia estudado, entrevistou professores e colegas do cientistas etc. A mobilização foi gigantesca. Só depois disso o historiador anotou seu registro. Historiadores e biógrafos têm reputação a zelar né???

Um outro exemplo: se você comprar um livro sobre a história do Stalinismo que diga que Stálin matou Kirov (o prefeito de São Petersburgo) eu diria para você jogar fora o livro. Explico: não há um único historiador importante do Stalinismo que diga que Stálin matou Kirov. Todos (os grandes historiadores) se limitam a levantar os dados e mostrar que ninguém além de Stálin é suspeito, pois jamais conseguiram provar (no sentido do que é uma prova em história) que Stálin ordenou o assassinato. Por isso apenas sugerem – como é o caso dos grandes historiadores Simon Sebag Montefiore (A corte do Czar Vermelho, p. 182-183) e Dmitri Volkogonov (Stalin, triunfo e estratégia, p. 209). Ora, mas o stalinismo acabou, por que a hesitação? Porque um historiador profissional e respeitável não age de modo irresponsável, como de resto qualquer profissional respeitável. Ele até poderia dizer algo que nos agradaria, mas como historiador teria sua reputação manchada.

(Alguém conhece algum Best seller biográfico [que seja respeitado de acordo com os cânones da historiografia] com história mal feita???).

Expresso aqui um valor (ou seja, não se trata de um argumento): temos o direito de falar bem e mal de qualquer pessoa pública. Não temos o direito de caluniar, mentir e difamar – e, se assim o fizermos, tem a lei para proteger o difamado. Por que expresso este valor??? Não sou um intelectual  sou um reles professorzinho – mas me justifico: é este valor que precisa ser protegido se quisermos (se quisermos, trata-se de uma opção) um tipo de sociedade que se desenvolve mediante o contraditório, mediante a discussão sem limites (exceto o da lei para casos de difamação). Nenhuma sociedade desenvolvida repele o debate livre.

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