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domingo, 6 de dezembro de 2015

LEITURA DE DOMINGO

Olha aí: é o meu guri

               Matheus Pichonelli

Perto daqui, cinco jovens foram fuzilados por policiais em uma comunidade da Zona Norte do Rio enquanto passeavam de carro. Em um dos portais que noticiou o caso, acompanho a comoção diante do extermínio. “Pela foto, percebi que era só coisa boa”, escreveu um leitor, em tom de ironia. “De madrugada lá na Lagartixa, coisa boa não deviam estar aprontando”, replicou outro.

“Coisa boa”, no Brasil, tem nome. Tem lugar certo para circular. Tem chance de mostrar documento. E tem cor. Os meninos assassinados, quase todos negros, aprontaram: acharam que por aqui a alegria era impune. Saíram de casa para comemorar, em um barzinho da cidade, a admissão de um deles como Jovem Aprendiz do Atacadão. Como o Guri, da música de Chico Buarque, ele estampa agora as manchetes após ter prometido que um dia chegaria lá.

Longe daqui, o medo das metralhadoras colocou Paris em estado de sítio. Com medo de novos ataques de uma guerra em andamento e ainda não declarada, líderes de 195 nações, todos com cara de coisa boa, se reúnem para decidir a melhor maneira de esfolar o Planeta sem provocar tantos estragos. “Todos estão familiarizados com os impactos das mudanças climáticas sobre todos os continentes. Não há mais incertezas científicas, e os líderes reconhecem que o futuro é de quem avançar prontamente para a economia de baixo carbono”, diz o secretário-geral da ONU Ban Ki-moon. Não fosse a guerra movida pelo combustível de alto carbono, penso comigo, talvez o encontro ocorresse na mais enfadonha paz.

A nova ordem dos fatores parece clara, mas nem tão longe daqui os acordos para a extração de combustíveis fósseis, de altíssima emissão de carbono, acabam de drenar o sistema político e econômico do país. Parece metáfora, mas não é.

A passagem do desenvolvimento deixou a conta: colocou parte do PIB na cadeia. A cadeia de envolvimento é extensa. Preso desde quinta-feira, André Esteves, um dos maiores banqueiros do país, é suspeito de participar de um acordo para levantar recursos e financiar, em troca do silêncio, a fuga de um ex-diretor da Petrobras acusado de corrupção. O plano fracassou, o ex-diretor resolveu falar, e a já frágil barreira de contenção entre o sistema político e o econômico se rompeu. O tsunami varreu da vida pública o senador Delcídio do Amaral (PT-MS), articulador do plano e suspeito de atrapalhar as investigações sobre o plano. Ele é acusado de se beneficiar da compra de uma refinaria no Texas, nos Estados Unidos, adquirida pela Petrobras por um preço muito acima do valor de mercado.

A prisão do senador surpreendeu a todos, mas as suspeitas não são novas. Em abril de 2014, o Jornal Nacional já mostrava: documentos internos da Petrobras revelam contratos suspeitos fechados pela Petrobras com a Alstom, a mesmíssima empresa denunciada por formação de cartel em São Paulo, apesar dos alertas sobre risco de prejuízo nos negócios para fornecimento e para a manutenção de turbinas em termelétricas feitos no governo Fernando Henrique Cardoso.

As turbinas da Alstom serviriam à termelétrica de Piratininga, em São Paulo. Usava óleo pesado como combustível e passaria a ser movida a turbinas a gás, fonte mais barata de energia. O contrato foi assinado em 2001 em meio a um programa emergencial. Com a oferta de energia escassa na época, o negócio, segundo o jornal, custou quase US$ 50 milhões.

O resumo executivo que orientou a decisão, favorável à fornecedora e danosa à compradora, foi assinado por Delcídio do Amaral, então diretor da área de gás e energia da Petrobras. Ele autorizava o então gerente executivo de energia, Nestor Cerveró, a assinar os instrumentos contratuais em nome da Petrobras. Ambos tinham boa cara, diriam os comentaristas de portal.

Quase 15 anos depois, a Lava Jato mostra que a troca de guarda no governo e no comando da Petrobras não serviu para barrar o esquema. Cerveró se tornou diretor da área internacional, onde Eduardo Cunha, presidente da Câmara eleito pelo PMDB, partido agora alçado a alternativa moralizadora do país, mandava e desmandava. Sobre ele, o homem capaz de abrir o processo contra uma presidenta cujo governo é associado ao mais perverso sistema de corrupção, recai a suspeita de receber R$ 45 milhões em troca de uma emenda em uma Medida Provisória favorável aos interesses do banqueiro gente fina.

No meio do noticiário, não é de se estranhar que a corrupção passe a ser vista, pela primeira vez, como o maior problema do país, segundo o Datafolha. Resta entender o que temos a ver com ela. A opinião é compartilhada por 36% da população, que rebaixou a saúde como o segundo maior motivo de preocupação (16%) da nação.

Assim como a segurança e a violência, a educação é hoje considerada um problema para 8% da população, o que deve explicar o silêncio dos demais em relação ao ministro que prevê um morticínio no Brasil caso os médicos fossem tão ruins quanto os professores ou ao governador com cara de bonzinho que promete fechar quase cem escolas em São Paulo, aciona a polícia e declara guerra contra quem reagiu à medida. Os rebelados são estudantes, e não tomariam sopapos de policiais se estivessem calados, quietinhos, à espera das mudanças anunciadas, sem qualquer debate qualificado, pelos homens adultos com cara boa.

“Coisa boa não deviam estar aprontando”, dizem sempre os comentaristas de portal, oficiais ou amadores, ao justificar a violência sobre as populações mais vulneráveis, quase todos jovens, quase todos negros, que se rebelam contra as remoções diárias em direção às franjas da cidade para a passagem do progresso, seja a escola relegada a outros planos, seja a barragem mal construída, a refinaria superfaturada, a avenida para receber cada vez mais automóveis ou o estádio desnecessário para a Copa das Copas.

Escoltados por servidores armados, que atiram primeiro e perguntam depois, quem pavimenta o caminho são empreiteiros, banqueiros e lideranças partidárias agora apavorados com a exposição dos negócios e o fim da reputação. Chega a ser irônico: não poderíamos imaginar que um dia chegariam lá. Pelos sorrisos estampados nas revistas e colunas sociais, sempre nas melhores casas das melhores famílias, só podiam estar aprontando coisa boa.

https://br.noticias.yahoo.com/blogs/matheus-pichonelli/olha-a%C3%AD-%C3%A9-o-meu-guri-144402203.html

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