Quem come purê de batata no cachorro-quente?
Bruna Grotti
Sou paulista. Falo “bolacha”, “mano”, “meu”, “mina”, “busão”, “balada”, “se pá”, “cabuloso”, “padoca”, “larica”, ”tenso”. “Coxinha” pra galera engomadinha e/ou reacionária, “farol” para semáforo, “mó cara” para “um tempão”. Tenho aquele sotaque horroroso, meio Faustão, meio Galisteu – mas com um toquezinho de Nerso da Capitinga, porque na verdade sou de São Bernardo. Pego trânsito, reclamo do trânsito, perco um razoável tempo da minha vida no trânsito. Tenho sinusite, rinite e todas as outras inflamações decorrentes da poluição. Não tiro o celular do bolso por motivo algum quando estou andando na rua. Saio de casa à uma da manhã do sábado ainda sem ter decidido qual a da night. Levo na bolsa uma sombrinha, que é pra estar prevenida da infalível – e detestável – garoa. Não consigo avistar uma árvore a partir da minha janela – só prédio, prédio e mais prédio.
Dou rolê na avenida Paulista. Faço a sacoleira no Brás. Corro no Ibirapuera – ou no Villa Lobos. Cumpro 90% dos clichês paulistanos. Mas se tem uma coisa que não consigo aceitar é esse lance de colocar purê de batata no cachorro-quente. Pra quem nunca comeu um cachorro-quente – ou hot dog, porque paulistano adora enfiar umas palavras em inglês no meio de cada frase – em São Paulo, cabe explicar: aqui, cachorro-quente é tipo vale-tudo. Além dos clássicos batata-palha, ketchup e mostarda, vale colocar repolho, tomate e cebola. Vale colocar milho, ervilha, uva passa. Vale colocar beterraba ralada, cenoura ralada e carne moída. Vale colocar as cinzas da sua avó. E, se você pedir com jeitinho, vale colocar até as cinzas da avó do tiozinho que está preparando o cachorro-quente. Tudo para agradar a clientela.
É como se você estivesse montando seu prato no self-service, só que sobre um pão aberto ao meio. Imediatamente após escolhidos todos os ingredientes e segundos antes de o seu lanche ir para a prensa – porque aqui a gente prensa cachorro-quente, na mesma lógica de quem senta em cima da mala de viagem para fechar o zíper –, o moço faz uma das perguntas gastronomicamente mais ofensivas que se pode fazer a um ser humano:
– Vai purê?
Eu sei que ofensivo é passar fome, gente. Ou, no máximo, sair matando bicho adoidadamente para satisfazer os caprichos humanos. Cresci raspando caldinho de feijão no prato, que é pra saborear essa iguaria maravilhosa até a última gota – literalmente. No meu prato do restaurante por quilo, arroz, feijão, strogonoff, bobó de camarão e farofa convivem harmonicamente, como se fossem velhos amigos. Mas nada me faz desistir da ideia de que é uma agressão sem tamanho colocar purê de batata no cachorro-quente. Em primeiro lugar, porque é uma explosão de carboidrato. Pão é carboidrato, batata-palha é carboidrato, purê de batata é carboidrato. Se a consequência inicial da ingestão dessa bomba de carboidrato é aquela maçaroca que se forma na boca – que de tão densa a gente precisa empurrar com o dedo pra engolir –, imagine a final.
Em segundo lugar, porque toda essa secura vai dar sede. E o nosso VR não trabalha com bebidas – aliás, se a gente tá comendo cachorro-quente, é porque, provavelmente, é final de mês e nem existe mais VR. E em terceiro, porém não menos importante: purê de batata é um preparo constantemente servido em hospitais – portanto, insosso. Logo, não acrescenta sabor ao cachorro-quente e tem como única função aprisionar todos os outros ingredientes dentro do pão. O purê de batata está para o cachorro-quente assim como as grades estão para as janelas. As gaiolas estão para os pássaros. As camisas de força estão para os internados compulsórios. Os sutiãs estão para os peitos. A igreja está para o sexo. O estado de exceção está para o cidadão.
E eu não sei vocês, mas eu quero é liberdade. Pra falar, andar, rir, chorar, me vestir, pensar, expressar, escrever, sentir, fazer, conhecer, amar. Inclusive, pra pedir o meu cachorro-quente. Sem purê de batata, por favor.
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