Os diamantes chegaram
Luis Fernando Verissimo
Ubiratan S., funcionário público, 47 anos, casado com Hilda S., prendas domésticas, sem filhos, acordou no meio da noite de um sonho burocrático. O telefone estava tocando. Ubiratan S. olhou seu relógio de pulso, que nunca atrasava ou adiantava. Duas e 22. Àquela hora, só podia ser morte na família ou engano. O tio Potiguar, pensou Ubiratan S., levantando-se, tonto. Morreu. Quando ergueu o fone do gancho, Ubiratan S. já reorganizava, mentalmente, a sua rotina do dia seguinte, quinta-feira, para acomodar o velório e o enterro do tio Potiguar.
― Alô?
― Os diamantes chegarram ― disse uma voz feminina. Assim mesmo, chegarram, o erre carregado. E não disse mais nada.
De volta à cama, Ubiratan acalmou Hilda S., prendas domésticas, olhos arregalados.
― Era trote. Dorme
No dia seguinte, quinta-feira, Ubiratan S. maldisse várias vezes o telefonema da noite. Tinha lhe roubado cinco minutos de descanso reparador e ele, sem suas oito horas completas de sono, ficava imprestável. Na repartição, carimbou uma via errada pela primeira vez na sua vida funcional. Mas o mundo era assim, cheio de gente sem ter o que fazer.
Quase no fim do expediente, chegou o envelope. Era um envelope branco, comum. Dentro, um guardanapo de papel com o nome de um bar impresso. E, escrito à mão: "Hoje. Dez horas. Se eu estiver bebendo um Martini é sinal de que tudo está bem. Um drinque longo é sinal de perigo. Helga".
Ubiratan S. amassou o envelope e o guardanapo e jogou na cesta, indignado. Aquilo era coisa do pessoal do Arquivo. Uns desocupados. Ainda iam ouvir poucas e boas. Mais três ou quatro anos e Ubiratan chegaria a um cargo de chefia e aí aquela folga ia acabar. Poucas e boas.
À meia-noite, o telefone do seu apartamento tocou. Hilda S., prendas domésticas, acordou assustada. Ubiratan S. jogou longe o seu Vida Cristã e pulou da cama. O tio Potiguar!
― É a Helga ― disse a mesma voz. ― Esperei você no bar até agora. O que houve?
Ela pronunciava esperrei. Ouviu poucas e boas. Estava pensando o quê? Ele era um homem de respeito, responsável, trabalhador... A mulher disse "compreendi" e desligou.
Ubiratan S. recuperou o controle antes de voltar para a cama. Não gostava de perder o controle. Era um homem metódico. Desde os dois ou três anos, quando aprendera a se limpar sozinho, era um homem metódico. Disse para Hilda S., prendas domésticas, que tinha sido um trote outra vez.
― Dorme, dorme.
No dia seguinte, outro envelope branco. Um bilhete: “Desculpe. Eu devia saber que seu telefone está controlado e você não pode falar livremente. Mas precisamos nos encontrar logo. Tenho os diamantes e o anão está no meu encalço. Sei que Dombrovski também chegou de Buenos Aires. O que vamos fazer? Helga”.
Sábado, Ubiratan S. e Hilda S., prendas domésticas, foram visitar o tio Potiguar, que estava ótimo. Aquele não morria tão cedo. Na volta, entraram numa sorveteria. Hilda S., prendas domésticas, adorava creme russo. Ubiratan notou o anão que entrou atrás deles e pediu ameixa e coco.
Às quatro horas da madrugada, o telefone tocou. Hilda S., prendas domésticas, acordou em pânico. Era Helga.
― Você está sendo vigiado.
― Eu sei ― disse Ubiratan.
Ubiratan S. não dormiu mais naquela noite. Passou o domingo espiando pela janela. Não poderia descrever o que sentia. Não era mais indignação. Nem medo. Era assim como um frio de antecipação na barriga. Também não dormiu na noite de domingo para segunda. Na repartição, carimbou a própria mão várias vezes, distraidamente. E então, na noite de segunda, o telefone tocou outra vez. Hilda S., prendas domésticas, deu um grito. Ubiratan correu para atender.
― Rápido! ― disse Helga. ― Eles estão rondando o meu quarto. Não sei o que fazer. Venha depressa!
Ela deu o nome de um hotel. E de repente, Ubiratan S. estava correndo dentro do seu apartamento. Vestiu-se como um raio. Eufórico. Hilda S., prendas domésticas, não entendia nada. O que era? Mas Ubiratan não respondeu. Não saberia o que dizer. Se abrisse a boca era para dar uma gargalhada descontrolada. Quando saiu pela porta pela última vez, ouviu Hilda S., prendas domésticas, gritando da cama:
― É o tio Potiguar? Ubiratan, me responde! É o tio Potiguar?
Hilda S., prendas domésticas, nunca mais viu Ubiratan S. Ninguém na cidade e na repartição viu Ubiratan S. Sua mulher recebe remessas de dinheiro irregularmente de lugares misteriosos. Adis-Abeba. Antuérpia. Macau. Uma vez julgou identificar o marido junto com uma loira numa foto de revista sobre a temporada de inverno em Saint-Moritz, mas o cabelo, oxigenado e penteado para a frente, era diferente. Outra vez, um telefonema que parecia vir de muito longe,
― Hilda?
― Ubiratan, onde é que...
― Não se preocupe. Está tudo bem.
― Mas Ubiratan...
― Não posso falar agora. Um beijo.
No fundo, o som de uma orquestra de marimbas. E um dia bateu um negrão com sotaque francês na porta do apartamento e entregou um pacote.
― É de Ubiratan? ― perguntou Hilda S., prendas domésticas.
― Pode ser ― respondeu o negrão ― Nós só conhecemos ele pelo codinome. Lê Faucon.
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