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domingo, 4 de dezembro de 2016

LEITURA DE DOMINGO

Os diamantes chegaram

    Luis Fernando Verissimo
Ubiratan S., funcionário público, 47 anos, casado com Hilda S., prendas domésticas, sem filhos, acordou no meio da noite de um sonho burocrático. O telefone estava tocando. Ubiratan S. olhou seu relógio de pulso, que nunca atrasava ou adiantava. Duas e 22. Àquela hora, só podia ser morte na família ou engano. O tio Potiguar, pensou Ubiratan S., levantando-se, tonto. Morreu. Quando ergueu o fone do gancho, Ubiratan S. já reorganizava, mentalmente, a sua rotina do dia seguinte, quinta-feira, para acomodar o velório e o enterro do tio Potiguar.

― Alô?

― Os diamantes chegarram ― disse uma voz feminina. Assim mesmo, chegarram, o erre carregado. E não disse mais nada.

De volta à cama, Ubiratan acalmou Hilda S., prendas domésticas, olhos arregalados.

― Era trote. Dorme

No dia seguinte, quinta-feira, Ubiratan S. maldisse várias vezes o telefonema da noite. Tinha lhe roubado cinco minutos de descanso reparador e ele, sem suas oito horas completas de sono, ficava imprestável. Na repartição, carimbou uma via errada pela primeira vez na sua vida funcional. Mas o mundo era assim, cheio de gente sem ter o que fazer.

Quase no fim do expediente, chegou o envelope. Era um envelope branco, comum. Dentro, um guardanapo de papel com o nome de um bar impresso. E, escrito à mão: "Hoje. Dez horas. Se eu estiver bebendo um Martini é sinal de que tudo está bem. Um drinque longo é sinal de perigo. Helga".

Ubiratan S. amassou o envelope e o guardanapo e jogou na cesta, indignado. Aquilo era coisa do pessoal do Arquivo. Uns desocupados. Ainda iam ouvir poucas e boas. Mais três ou quatro anos e Ubiratan chegaria a um cargo de chefia e aí aquela folga ia acabar. Poucas e boas.

À meia-noite, o telefone do seu apartamento tocou. Hilda S., prendas domésticas, acordou assustada. Ubiratan S. jogou longe o seu Vida Cristã e pulou da cama. O tio Potiguar!

― É a Helga ― disse a mesma voz. ― Esperei você no bar até agora. O que houve?

Ela pronunciava esperrei. Ouviu poucas e boas. Estava pensando o quê? Ele era um homem de respeito, responsável, trabalhador... A mulher disse "compreendi" e desligou.
Ubiratan S. recuperou o controle antes de voltar para a cama. Não gostava de perder o controle. Era um homem metódico. Desde os dois ou três anos, quando aprendera a se limpar sozinho, era um homem metódico. Disse para Hilda S., prendas domésticas, que tinha sido um trote outra vez.

― Dorme, dorme.

No dia seguinte, outro envelope branco. Um bilhete: “Desculpe. Eu devia saber que seu telefone está controlado e você não pode falar livremente. Mas precisamos nos encontrar logo. Tenho os diamantes e o anão está no meu encalço. Sei que Dombrovski também chegou de Buenos Aires. O que vamos fazer? Helga”.

Sábado, Ubiratan S. e Hilda S., prendas domésticas, foram visitar o tio Potiguar, que estava ótimo. Aquele não morria tão cedo. Na volta, entraram numa sorveteria. Hilda S., prendas domésticas, adorava creme russo. Ubiratan notou o anão que entrou atrás deles e pediu ameixa e coco.

Às quatro horas da madrugada, o telefone tocou. Hilda S., prendas domésticas, acordou em pânico. Era Helga.

― Você está sendo vigiado.

― Eu sei ― disse Ubiratan.

Ubiratan S. não dormiu mais naquela noite. Passou o domingo espiando pela janela. Não poderia descrever o que sentia. Não era mais indignação. Nem medo. Era assim como um frio de antecipação na barriga. Também não dormiu na noite de domingo para segunda. Na repartição, carimbou a própria mão várias vezes, distraidamente. E então, na noite de segunda, o telefone tocou outra vez. Hilda S., prendas domésticas, deu um grito. Ubiratan correu para atender.

― Rápido! ― disse Helga. ― Eles estão rondando o meu quarto. Não sei o que fazer. Venha depressa!

Ela deu o nome de um hotel. E de repente, Ubiratan S. estava correndo dentro do seu apartamento. Vestiu-se como um raio. Eufórico. Hilda S., prendas domésticas, não entendia nada. O que era? Mas Ubiratan não respondeu. Não saberia o que dizer. Se abrisse a boca era para dar uma gargalhada descontrolada. Quando saiu pela porta pela última vez, ouviu Hilda S., prendas domésticas, gritando da cama:

― É o tio Potiguar? Ubiratan, me responde! É o tio Potiguar?

Hilda S., prendas domésticas, nunca mais viu Ubiratan S. Ninguém na cidade e na repartição viu Ubiratan S. Sua mulher recebe remessas de dinheiro irregularmente de lugares misteriosos. Adis-Abeba. Antuérpia. Macau. Uma vez julgou identificar o marido junto com uma loira numa foto de revista sobre a temporada de inverno em Saint-Moritz, mas o cabelo, oxigenado e penteado para a frente, era diferente. Outra vez, um telefonema que parecia vir de muito longe,

― Hilda?

― Ubiratan, onde é que...

― Não se preocupe. Está tudo bem.

― Mas Ubiratan...

― Não posso falar agora. Um beijo.

No fundo, o som de uma orquestra de marimbas. E um dia bateu um negrão com sotaque francês na porta do apartamento e entregou um pacote.

― É de Ubiratan? ― perguntou Hilda S., prendas domésticas.

― Pode ser ― respondeu o negrão ― Nós só conhecemos ele pelo codinome. Lê Faucon.

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