Gaúchos e cariocas
Luis Fernando Veríssimo
É preciso dizer que estávamos naquela brumosa terra de ninguém, que fica depois do décimo ou do 15º chope. Tão brumosa que não dá mais para distinguir entre o décimo e o 15º.
Tínhamos sido apresentados no começo da noite mas já éramos amigos de infância. Em poucas horas nossa amizade passara por vários estágios, desde o “leste o livro do Chico?”, até as piores confidências, e agora nos comportávamos como confrades, como se nossa amizade fosse mais antiga que nós mesmos. Isto é, estávamos brigando.
– Vocês, gaúchos…
– O que é que tem gaúcho?
– Pra mim gaúcho é tudo veado.
– Não radicaliza.
– Se tem que dizer que é macho, é porque não é.
– Lá no sul se diz que numa briga de gaúcho, paulista, mineiro e carioca, o gaúcho bate, o paulista apanha e o mineiro aparta.
– E o carioca?
– Fugiu.
– Viu só? Pensam que são mais machos que os outros. Diz que as bichas de Paris protestaram porque as bichas cariocas estavam invadindo o seu mercado: “Voltem para o Rio. Go home!”. Aí as bichas cariocas reagiram: “Ah, é? Então tirem as gaúchas de lá.”
– Está aí, fugiram. Mas isso tudo é mágoa porque são os gaúchos que mandam neste país. Vocês estão assim desde que nós amarramos os cavalos ali no obelisco.
– Aliás, essa fixação no obelisco…
– Gaúcho é o único brasileiro sério.
– Sem graça não é sério.
– Só o gaúcho fala português. Essa língua de vocês não existe. Paulista põe “i” onde não têm. Você falam chiando. Onde tem um “r” botam dois e onde tem dois botam quatro.
-Vocês falam espanhol errado e pensam que é português!
– Mas o que a gente diz é pra valer. Não é como carioca que diz uma coisa e quer dizer outra.
– Ah, é?
– É. Quando carioca encontra alguém e diz: “Meu querido!”, quer dizer que não se lembra do nome. “Precisamos nos ver” quer dizer “está combinado, eu não procuro você e você não me procura”.
– O que vocês não aguentam é que nós, cariocas, somos meu ip informais, bem-humorados…
– Isso é mito. Entra num “Grajaú-Leblon” lotado na Nossa Senhora de Copacabana, às três da tarde, no verão, que eu quero ver o bom humor.
– Não radicaliza.
– Os mitos cariocas. O Zico, por exemplo…
– Eu sabia. Eu sabia que ia chegar no Zico!
– O Zico é uma entidade abstrata criada pelo inconsciente coletivo do Maracanã.
– O Campeão do Mundo. Campeão do Mundo!
– Porque não entrou um inglês no calcanhar dele. Se encosta um, o Zico cai.
– É. O bom é o Batista.
– Não troco um Batista por dois Zicos.
– Ai, meu Deus. Ai, meu Deus!
– Outra coisa: mulher.
– Claro. Mulher. A mulher carioca não vale nada.
– Vale. Mas é sempre da mesma cor. Mulher tem que ir mudando de cor com as estações. Quando chega o verão, as gaúchas vão tostando aos poucos, como carne num braseiro de chão, até estar no ponto. Só ficam prontas mesmo em fevereiro. A carioca está sempre bem passada. É como comer churrasco em bandeja.
– É. A medida de todas as coisas, para o gaúcho, é o churrasco. A comida mais sem imaginação que existe.
– Vai dizer que comida é isto que vocês comem aqui?
– Mas bá.
Eu estava levando o chope à boca e parei.
– O que foi que você disse?
– Eu? Nada.
– Você disse “mas bá”.
– Não disse.
– Disse. Eu ouvi nitidamente um “mas bá”.
– Está bem. Eu disse.
– De onde você é?
– Dom Pedrito.
Estava no Rio há menos de dois anos e chiava como uma locomotiva no cio. Mas não me senti triunfante. Me senti derrotado. Eu estranhara ele não ter dito: “Se você gosta tão pouco do Rio, o que é que está fazendo aqui?”. Eu não poderia responder a não ser com a verdade, que era fascinado pelo Rio. Uma característica de gaúcho é que gaúcho é fascinado pelo Rio. E ali estava ele como prova que depois do fascínio vinha a rendição, a vitória carioca. Acabou a discussão. Nos despedimos e saímos, cada um cambaleando para um lado. Na saída ele ainda disse:
– Precisamos nos ver…
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