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sexta-feira, 25 de março de 2016

MÚSICA NA SEXTA

Em maio de 1973 a gravadora Phonogram (ex-Philips, e depois Polygram) organizou no Palácio das Convenções do Anhembi um evento em que reuniria em duplas os maiores nomes de seu elenco. Gilberto Gil e Chico Buarque compuseram para a ocasião a música “Cálice”. Sobre a composição e a apresentação Gilberto Gil fala, conforme relato em seu site:

A Polygram queria fazer um grande evento com todos os seus artistas no formato de encontros, e foi dada a mim e ao Chico a tarefa de compor e cantar uma música em dupla. 

Era semana santa e nós marcamos um encontro no sábado no apartamento dele, na Rodrigo de Freitas (a lagoa referida, aliás, por ele na letra). Eu pensei em levar alguma proposta e, um dia antes, no fim da tarde, me sentei no tatame, onde eu dormia na ápoca, e me pus a esvaziar os pensamentos circulantes para me concentrar. Como era sexta-feira da Paixão, a ideia do calvário e do cálice de Cristo me seduziu, e eu compus o refrão incorporando o pedido de Jesus no momento da agonia. Em seguida escrevi a primeira estrofe, que eu comecei me lembrando de uma bebida amarga chamada Fernet, italiana, de que o Chico gostava e que ele me oferecia sempre que eu ia a sua casa.

No sábado não foi diferente: ele me trouxe um pouco da bebida, e eu já lhe mostrei o que tinha feito. Quando, cantando o refrão, eu cheguei ao 'cálice', no ato ele percebeu a ambiguidade que a palavra, cantada, adquiria, e a associou com 'cale-se', introduzindo na canção o sentido da censura. Depois, como eu tinha trazido só o refrão melodizado, trabalhamos na musicalização da estrofe a partir de ideias que ele apresentou. E combinamos um novo encontro.

Ele acabou fazendo outras duas estrofes e eu mais uma, quatro no total, todas em oito decassílabos. Dois ou três dias depois nos revimos e definimos a sequência. Eu achei que devíamos intercalar nossas estrofes, porque elas não apresentavam um encadeamento linear entre si. Ele concordou, e a ordem ficou esta: a primeira, minha, a segunda, dele; a terceira, minha, e a última, dele.

Na terceira, o quarto verso e os dois finais já foram influenciados pela idéia do Chico de usar o tema do silêncio. O termo, alías, já aparecia na outra estrofe minha, anterior: 'silêncio na cidade não se escuta', quer dizer: no barulho da cidade, não é possível escutar o silêncio; quer dizer: não adianta querer silêncio porque não há silêncio, ou seja: não há censura, a censura é uma quimera; além do mais, 'mesmo calada a boca, resta o peito' e 'mesmo calado o peito, resta a cuca': se cortam uma coisa, aparece outra.

Aí, no dia em que nós fomos apresentar a música no show, desligaram o microfone logo depois de termos começado a cantá-la. Tenho a impressão de que ela tinha sido apresentada à censura, tendo-nos sido recomendado que não a cantássemos, mas nós fizemos uma desobediência civil e quisemos cantá-la."

Em seu livro 85 anos de Música Brasileira, Jairo Severiano e Zuza Homem de Mello ainda falam acerca da apresentação e da música:

"Irritadíssimo com o microfone desligado, Chico tentava outro mais próximo, que era cortado em seguida, e assim, numa cena tragicômica, foram todos sendo "calados", impedindo-o de cantar "Cálice" até o fim. Liberada cinco anos depois, a canção foi incluída no elepê anual de Chico, com ele declarando que aquele não era o tipo de música que compunha na época (estava trabalhando no repertório de "Ópera do Malandro"), mas teria que ser registrado, pois sua tardia liberação (juntamente com "Apesar de Você" e "Tanto Mar") não pagava o prejuízo da proibição. Na gravação, as estrofes de Gilberto Gil, que estava trocando a PolyGram pela WEA, são interpretadas por Milton Nascimento, fazendo o coro o MPB 4, em dramático arranjo de Magro."

Cálice
Gilberto Gil/Chico Buarque

Pai, afasta de mim esse cálice
Pai, afasta de mim esse cálice
Pai, afasta de mim esse cálice
De vinho tinto de sangue

Como beber dessa bebida amarga
Tragar a dor, engolir a labuta
Mesmo calada a boca, resta o peito
Silêncio na cidade não se escuta
De que me vale ser filho da santa
Melhor seria ser filho da outra
Outra realidade menos morta
Tanta mentira, tanta força bruta

Como é difícil acordar calado
Se na calada da noite eu me dano
Quero lançar um grito desumano
Que é uma maneira de ser escutado
Esse silêncio todo me atordoa
Atordoado eu permaneço atento
Na arquibancada pra a qualquer momento
Ver emergir o monstro da lagoa

De muito gorda a porca já não anda
De muito usada a faca já não corta
Como é difícil, pai, abrir a porta
Essa palavra presa na garganta
Esse pileque homérico no mundo
De que adianta ter boa vontade
Mesmo calado o peito, resta a cuca
Dos bêbados do centro da cidade

Talvez o mundo não seja pequeno
Nem seja a vida um fato consumado
Quero inventar o meu próprio pecado
Quero morrer do meu próprio veneno
Quero perder de vez tua cabeça
Minha cabeça perder teu juízo
Quero cheirar fumaça de óleo diesel
Me embriagar até que alguém me esqueça

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