A verdadeira história de Pio
Paulo Mendes Campos
No princípio do ano, para amenizar o reinício das aulas, as crianças compraram um pinto na feira. Deram-lhe o nome de Pio. Todos que o antecederam tinham morrido, mas dessa vez residia no edifício uma senhora que entendia da sobrevivência de pinto de feira em apartamento perto do mar. Instruídas por ela, as crianças conseguiram manter acesa dentro de Pio a faísca da vida. Já de pequenino, mostrou-se pinto esquisito, achegado aos seres humanos e danado de andejo. Piava com monotonia os segundos todos do tempo, como se o chateasse a passagem das horas. Em mudança de casa, passou dois dias subindo e descendo a escada, piando, piando, entre as pernas dos carregadores portugueses. Seu prestígio cresceu com o episódio; era tratado como gente e se orgulhava disso, assumindo um ar à vontade e presumido de bípede empenado. Mas acabou me aborrecendo. Como as crianças tinham atingido a irremovível crise do cachorrinho, acabei cedendo, mas exigindo a extradição de Pio para a casa que o Zanine estava construindo na Barra da Tijuca.
Meses depois, ao visitar o amigo, Pio já era quase um galo, branco e bonito, mas extravagante e presunçoso. Indiferente ao terreiro, preferia desfilar na sala e na varanda, misturando-se às pessoas, peito estufado, chamando atenção para uma figura que ele queria irresistível. Mais algum tempo, virou galo mesmo e aí não demorou a revelar os indícios neuróticos que o agitavam. Pio nunca tinha visto na vida outro ser galináceo. Acreditava-se o único ente de sua raça, superior e absoluto. Firmou-se na crença carismática, deu para agredir os homens. Como estes se defendessem com a ponta do sapato, mudou de tática, bicando-lhes à traição a barriga da perna. Só respeitava o próprio Zanine, a quem não tinha afeição, mas considerava com gratuidade um aliado no combate contra o mundo. Seguia o dono por todos os cantos, não como um cão humilde, mas com a imponência do chefe de gabinete acompanhando o ministro. Zanine, como aconteceu comigo, embora achasse graça na birutice de Pio, acabou saturado, dando o boboca de presente ao poeta Rubem Braga, que sempre foi um infalível receptador de aves desajustadas.
Já se sabe, o Braga é um fazendeiro do ar, morando entre hortaliças e cajueiros num décimo terceiro andar de Ipanema.
Insolente diante da natureza, Pio fez estragos na horta, desenterrou sementeiras, estraçalhou as couves, dando-se ainda à petulância de aborrecer, com relativo escândalo, a filha da cozinheira. Também o Braga, achando graça, foi complacente, impedindo que a cozinheira transformasse o doidinho em galo ao molho de cabidela. Mas acabou igualmente cheio, dando Pio ao hortelão português, dono de farto galinheiro no subúrbio. Antes, contudo, o galo foi colocado diante de um espelho, na esperança geral de que descobrisse o outro, o próximo, o irmão galináceo que ele devia amar como a si mesmo. Não quis saber de nada, persistindo na neurose: durante meio minuto encarou a imagem com estupefação, deu-lhe as costas e se foi, único de sua espécie, dono da pretensão que o inflava da crista sanguínea ao facho da cauda. Enfim chegou a hora do galinheiro, quando Pio passaria a viver uma vida normal dentro da comunidade, encontrando na força do amor a salvação.
Pois o bestalhão, mal ingressou no harém, matou a bicadas duas galinhas sinceras. E o português o comeu.
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