Ceia de burro em noite de Natal
Osvaldo Molles
Era um burro grande. Grande e sereno. Meio assim parecido
comigo, atrelado a esta carroça de lixo que é a vida, recolhendo detritos,
farrapos de sentimentalismo, de recordações, de recordações...
E madrugador também, burro namorando estrelas lá no Paraíso.
O Paraíso é alto. Tem um jardim lá não muito edênico. Não tem cravo, nem nardo,
nem cinamomo. Mas tem um jardim que se chama praça e que dá muito asfalto na
primavera. As maçãs do Paraíso custam muitos cruzeiros. E a tantos cruzeiros,
qualquer pecado é inflacionário. O Paraíso não tem cobras. Tem pneumáticos, que
nada têm a ver com serpentes. Áspides escravizadas a pernas que rodam e de que
o mundo moderno cortou a cabeça.
Mas o burro estava ali, velho, velho, sereno, sereno, e não
entendendo nada do Paraíso. Que é que é Paraíso para um burro? É um lugar cheio
de luzes e de fantasmas, que passam rolando e desprendendo cheiro de gasolina.
Ah... se ele pudesse, numa madrugada dessas, comer os brotinhos bem tenros do
jardim! Paraíso, para o meu burro, é lugar que se faz em três paradas. É sempre
longe dos canteiros verdes.
E caminhando assim pela madrugada, o burro antigo lá vai,
namorando a amplidão. Que se todas aquelas estrelas fossem feitas de capim
gordura, o velho atrelado à carroça de lixo sofreria mais que todo mundo, só de
olhá-las sem poder comê-las... Mas estrelas são de um azul claro. E claro não
tem prestígio pra burro, como o tem aquela vegetação saborosa da praça, depois
da chuva.
E há sempre três paradas. Uma na esquina da Sears, outra no
meio da praça que se chama Osvaldo Cruz, mas que para o burro é bem mais cruz
que Osvaldo.
Entretanto, hoje há uma novidade nas paradas do Paraíso. É
que ali, no meio da praça, justamente no segundo “ôhhh” do lixeiro, há uma
árvore de Natal. Uma árvore de Natal de um verde novo, lembrando assim aquelas
saladas de capim mimoso que o burro se acostumou a comer na distante infância
de burrinho.
E, então, o burro sereno, o burro manso e nunca farto,
começou, tranqüilamente, a comer a árvore de Natal. É justo, é razoável, é um
bálsamo aos vinte anos que ele cruza pela mesma praça sem nunca ter tido seu
prêmio. A recompensa aí está. Uma árvore de Natal deve ser um grande pitéu para
um burro de fomes confusas.
Mastigar árvores de Natal é espiritualizar-se. Que gosto
teria? Sei lá. Pergunte ao burro. Deve ter gosto de Papai Noel ou de lágrima de
Menino Jesus.
Não me perguntem mais, porque eu não como árvores de Natal.
Como um prosaico pão com queijo toda madrugada, que sempre tem gosto de estopa
ou de papel almaço.
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