GRANDE EDGAR
Luis Fernando Verissimo
Já
deve ter acontecido com você.
- Não está se lembrando de mim?
Você não está se lembrando dele. Procura,
freneticamente, em todas as fichas armazenadas na memória o rosto dele e o nome
correspondente, e não encontra. E não há tempo para procurar no arquivo
desativado. Ele está ali, na sua frente, sorrindo, os olhos iluminados,
antecipando a sua resposta. Lembra ou não lembra?
Neste
ponto, você tem uma escolha. Há três caminhos a seguir. Um, o curto, grosso e
sincero.
- Não.
Você não está se lembrando dele e não tem por que
esconder isso. O "Não" seco pode até insinuar uma reprimenda à
pergunta. Não se faz uma pergunta assim, potencialmente embaraçosa, a ninguém,
meu caro. Pelo menos não entre pessoas educadas. Você devia ter vergonha. Não
me lembro de você e mesmo que lembrasse não diria. Passe bem.
Outro caminho, menos honesto mas igualmente
razoável, é o da dissimulação.
- Não me diga. Você é o... o...
"Não me diga", no caso, quer dizer
"Me diga, me diga". Você conta com a piedade dele e sabe que cedo ou
tarde ele se identificará, para acabar com a sua agonia. Ou você pode dizer
algo como:
- Desculpe deve ser a velhice, mas...
Este também é um apelo à piedade. Significa
"Não torture um pobre desmemoriado, diga logo quem você é!" É uma
maneira simpática de dizer que você não tem a menor idéia de quem ele é, mas
que isso não se deve à insignificância dele e sim a uma deficiência de
neurônios sua. E há
o terceiro caminho. O menos racional e recomendável. O que leva à tragédia e à
ruína. E o que, naturalmente, você escolhe.
- Claro que estou me lembrando de você!
Você não quer magoá-lo, é isso. Há provas
estatísticas que o desejo de não magoar os outros está na origem da maioria dos
desastres sociais, mas você não quer que ele pense que passou pela sua vida sem
deixar um vestígio sequer. E, mesmo, depois de dizer a frase não há como
recuar. Você pulou no abismo. Seja o que Deus quiser. Você ainda arremata:
- Há quanto tempo!
Agora tudo dependerá da reação dele. Se for um
calhorda, ele o desafiará.
- Então me diga quem eu sou.
Neste caso você não tem outra saída senão simular
um ataque cardíaco e esperar, falsamente desacordado, que a ambulância venha
salvá-lo. Mas ele pode ser misericordioso e dizer apenas:
- Pois é.
Ou:
- Bota tempo nisso.
Você
ganhou tempo para pesquisar melhor a memória. Quem é esse cara, meu Deus?Enquanto resgata caixotes com fichas antigas do meio da poeira e das teias de
aranha do fundo do cérebro, o mantém à distância com frases neutras como
"jabs" verbais.
- Como cê tem passado?
- Bem, bem.
- Parece mentira.
- Puxa.
(Um colega da escola. Do serviço militar. Será um
parente? Quem é esse cara, meu Deus?)
Ele está falando:
- Pensei que você não fosse me reconhecer...
- O que é isso?!
- Não, porque a gente às vezes se decepciona com as pessoas.
- E eu ia esquecer você? Logo você?
- As pessoas mudam. Sei lá.
- Que idéia!
(É o Ademar! Não, o Ademar já morreu. Você foi ao
enterro dele. O... o... como era o nome dele? Tinha uma perna mecânica.
Rezende! Mas como saber se ele tem uma perna mecânica? Você pode chutá-lo,
amigavelmente. E se chutar a perna boa? Chuta as duas. "Que bom encontrar
você!" e paf, chuta uma perna. "Que saudade!" e paf, chuta a
outra. Quem é esse cara?)
- É incrível como a gente perde contato.
- É mesmo.
Uma
tentativa. É um lance arriscado, mas nesses momentos deve-se ser audacioso.
- Cê tem visto alguém da velha turma?
- Só o Pontes.
- Velho Pontes!
(Pontes. Você conhece algum Pontes? Pelo menos
agora tem um nome com o qual trabalhar. Uma segunda ficha para localizar no
sótão. Pontes, Pontes...)
- Lembra do Croarê?
- Claro!
- Esse eu também encontro, às vezes, no tiro ao alvo.
- Velho Croarê!
(Croarê. Tiro ao alvo. Você não conhece nenhum
Croarê e nunca fez tiro ao alvo. É inútil. As pistas não estão ajudando. Você
decide esquecer toda a cautela e partir para um lance decisivo. Um lance de
desespero. O último, antes de apelar para o enfarte.)
- Rezende...
- Quem?
Não
é ele. Pelo menos isso está esclarecido.
- Não tinha um Rezende na turma?
- Não me lembro.
- Devo estar confundindo.
Silêncio. Você sente que está prestes a ser
desmascarado.
- Sabe que a Ritinha casou?
- Não!
- Casou.
- Com quem?
- Acho que você não conheceu. O Bituca.
Você abandonou todos os escrúpulos. Ao diabo com a
cautela. Já que o vexame é inevitável, que ele seja total, arrasador. Você está
tomado por uma espécie de euforia terminal. De delírio do abismo. Como que não
conhece o Bituca?
- Claro que conheci! Velho Bituca...
- Pois casaram...
É a
sua chance. É a saída. Você passa ao ataque.
- E não me avisaram nada?!
- Bem...
- Não. Espera um pouquinho. Todas essas coisas acontecendo, a Ritinha casando
com o Bituca, o Croarê dando tiro, e ninguém me avisa nada?!
- É que a gente perdeu contato e...
- Mas o meu nome está na lista, meu querido. Era só dar um telefonema. Mandar
um convite.
- É...
- E você ainda achava que eu não ia reconhecer você. Vocês é que esqueceram de
mim!
- Desculpe, Edgar. É que...
- Não desculpo não. Você tem razão. As pessoas mudam...
(Edgar. Ele chamou você de Edgar. Você não se chama
Edgar. Ele confundiu você com outro. Ele também não tem a mínima idéia de quem
você é. O melhor é acabar logo com isso. Aproveitar que ele está na defensiva.
Olhar o relógio e fazer cara de "Já?!")
- Tenho que ir. Olha, foi bom ver você, viu?
- Certo, Edgar. E desculpe, hein?
- O que é isso? Precisamos nos ver mais seguido.
- Isso.
- Reunir a velha turma.
- Certo.
- E olha, quando falar com a Ritinha e o Mutuca...
- Bituca.
- E o Bituca, diz que eu mandei um beijo. Tchau, hein?
- Tchau, Edgar!
Ao se afastar, você ainda ouve, satisfeito, ele
dizer "Grande Edgar". Mas jura que é a última vez que fará isso. Na
próxima vez que alguém lhe perguntar "Você está me reconhecendo?" não
dirá nem não. Sairá correndo.
Nota da Redação: Essa é a edição número 100 do "Leitura de Domingo". Muito justo que tenha o texto de um dos melhores do ramo.