Meio covarde
Ivan Ângelo
Eu devia ter
dezesseis, dezoito anos no máximo. Teresa era uma vizinha nova e falada. Não
eram necessários muitos motivos para uma moça ficar falada naqueles anos 50,
mas Teresa conseguiu reunir quase todos: decote, vestido justo, batom vermelho,
sardas, tempo demais na janela, marido noturno e bissexto, muito bolero no
toca-discos e, motivo dos motivos, corpo em forma de violão, como se dizia.
Entre a minha casa e a dela havia um muro. Na época da antiga vizinha, velha,
feia, engraçada, amiga que eu visitava sempre, costumava pular nosso muro para
encurtar caminho. Ela não se importava e eu era quase uma criança. Agora,
olhando disfarçadamente a nova vizinha, eu ficava pensando como seria bom pular
o muro outra vez. Mas para essas coisas sou meio covarde.
O muro ficava na área
do tanque de lavar roupa. Do lado de lá, ela cantava com uma voz sensual,
inquietante. Meu pai não gostava, sabe-se lá por quê. Minha mãe também não,
pode-se imaginar por quê. Talvez os motivos dele e dela convergissem para o
mesmo ponto, embora diferentes, ponto que era o meu motivo para gostar tanto
daquele canto. A voz ficava equilibrando-se em cima do muro: "Meu bem,
esse seu corpo parece, do jeito que ele me aquece, um amendoim
torradinho". Dava para ouvir minha mãe murmurar: "Sem-vergonha".
O "torradinho" era quase um gemido rouco, talvez ela cantasse de
olhos fechados. De vez em quando umas calcinhas de renda eram penduradas no
varal. Minha mãe não suportava aquilo. Eu tinha vontade de espiar por cima do
muro para ver o que ela estava fazendo, mas para essas coisas sou meio covarde.
Uma noite ela
assoviou. Usava-se naqueles anos um assovio de galanteio, de homem para mulher,
um silvo curto logo emendado num mais longo, fui-fuiiiu, que podia ser
traduzido em palavras, e até era às vezes, quando a pessoa queria ser mais
discreta, ou quando estava contando que assoviaram para ela, e nesse caso a
garota falava: fulano fez um fui-fuiu pra mim. As mulheres às vezes usavam o
assovio para imitar com certa graça o jeito cafajeste dos homens, e foi o que
Teresa fez naquela noite. Tomei coragem, voltei, abri o portão, subi as
escadas, parei na sua frente no alpendre. Ela vestia um penhoar azul e sorria
da minha ousadia. Eu pretendia parecer desafiador, seguro, dono da situação,
mas o sorriso dela não indicava nada disso. Teresa disse com malícia que o
marido estava para chegar, não seria bom encontrar-me ali. Concentrei-me no
papel tantas vezes ensaiado, respondi que seria ótimo se ele chegasse, que
assim eu poderia explicar que ela havia assoviado, que eu havia subido para
tomar satisfações, que não sou palhaço... Não creio que a representação tenha
sido muito boa: ela continuava sorrindo. Recostou-se na amurada, usando a luz
do alpendre como uma atriz num palco, e sua voz quente convidou: "Ele não
vem hoje. Quer entrar um pouco?" Deveria ter sido mais prudente e
recusado, mas para essas coisas não sou covarde.
Entrei, conversamos
sobre o meu futuro e o passado dela. Vem cá ver minhas fotos, me disse, e eu a
segui até um quarto pequeno onde havia uma grande cama, um guarda-roupa, uma
mesinha com um abajur. Senta, ela disse. Apanhou no guarda-roupa uma caixa e
mostrou-me fotografias de quando era mocinha, cartas apaixonadas de antigos
namorados, retratos deles ou de outros com declarações de amor nas costas e uns
versos dedicados a ela pelo namorado atual. "Ele não é meu marido,
não." Eram sonetos copiados de Camões, palavra por palavra. Amor é ferida
que dói e não se sente. Busque amor, novas artes, novo engenho. Alma minha
gentil que te partiste. "Eu não gosto muito dele, mas gosto que ele me ame
assim. Os meus namorados sempre me amaram muito." Tive ciúmes deles e
vontade de contar a ela que os sonetos eram de Camões, mas para essas coisas
sou meio covarde.
A roupa que Teresa
vestia nem sempre estava onde deveria estar. Conversar em cima de uma cama,
recostar, mudar o braço de apoio, apanhar coisas para mostrar, buscar conforto
são movimentos que podem impedir um penhoar azul de cumprir seu papel, mesmo
que a pessoa não queira. Quando chegou a hora de falarmos de nós, disse-lhe que
seus olhares e sorrisos me pareciam zombaria e me deixavam encabulado. Que
tinha vontade de perguntar a ela "o quê que há?", em tom de briga.
Que tinha só dezessete (ou dezoito?) anos. Ela falou que me achava muito sério
para minha idade, muito bonitinho também, que quando ouvia barulho de bonde
depois das onze corna para o alpendre para me ver e que às vezes me olhava por
cima do muro. Tive vontade de contar que sonhava muito com ela. Mas para essas
coisas sou meio covarde.
Quase de manhã, pulei
o muro que dava para minha casa. Ela me disse que voltasse outras vezes. Era
perigoso e eu deveria ter recusado. Mas para essas coisas não sou covarde.
Nenhum comentário:
Postar um comentário