CHICO
Erico Verissimo
– Gente pobre não tem nome… – costumava dizer.
Tinha sete anos. De dia vendia jornais, de noite apanhava
bordoada do irmão mais velho, o Zico, que vivia embriagado.
A mãe havia muitos anos que estava atirada sobre um colchão
velho, paralítica, cadavérica, tendo a todas as horas do dia, diante dos olhos
baços e sem expressão, o mesmo quadro de misé-ria e desalento: as paredes
sórdidas do quarto, donde pendiam molambos, o teto carcomido e cheio de teias
de aranha, a janela sem batentes, eterna-mente escancarada, mostrando uma nesga
de céu em que nas noites claras se vislumbrava, como uma esmola luminosa, a
claridade fugidia de estrelas…
O pai – Chico mal se lembrava disto – morrera por um dia
triste de inverno, de peste, e se fora, quase nu, dentro duma carroça velha que
ia fazendo tóc-tóc-tóc-tóc. . ., aos solavancos, pela estrada barrenta e
sinuosa que ia dar no cemitério.
Chico ouvia sempre dizer que havia lá em cima, no céu, um
Deus muito bom e muito severo. que não queria que as crianças dissessem nomes
feios nem desobedecessem aos mais velhos. Era um homem muito poderoso, que
punha empenho em que todas as cousas na terra andassem direitas e bem feitas.
Surgia, então, na cabecinha do garoto um pro-blema
intrincado e insolúvel.
Chico via no mundo (mundo era a cidade em que ele, Chico,
morava) gente feliz, rica, alegre; crianças que andavam bem vestidas, que
tinham brinquedos surpreendentes e que comiam os doces mais saborosos desta
vida. Via, ao mesmo tempo, de Outro lado, os infelizes, os desprotegidos da
fortuna, os que rolam pão duro e andavam a ferir os pés descalços no pedregulho
das ruas. E o pequeno não podia compreender a razão de tanta desigualdade de
sorte no mundo. Como era que Deus, tão bom e tão justo, consentia em que
exis-tissem crianças felizes e protegidas, ao mesmo passo que existiam outras,
desgraçadas e sós, que, pra ganhar alguns tostões, – magríssimos tostões –,
tinham de andar vendendo jornais pelas ruas, à luz adustiva do sol?…
E Chico não compreendia… Não compreendia e ficava pensando,
pensando…
Mas não se detinha por muito tempo em tais cogitações, que
adivinhava inúteis. A vida ensinara-o a ser prático. Bem sabia que com sonhos e
lucubrações não ganharia o seu salário. Por isso se atirava ao trabalho.
– O’ia o Correio da Manhã! O Correeeeio! E assim ia vivendo…
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