Páginas

domingo, 24 de julho de 2016

LEITURA DE DOMINGO

Com certeza

É apenas um desabafo... Não consigo mais ouvir alguém falar "Com certeza" pra lá e pra cá... Com certeza, uma epidemia.
       
            Ricardo Freire
Você deve se lembrar da terrível epidemia de cólera que, há mais ou menos uns cinco anos, deveria arrasar o Brasil. A imprensa não falava em outra coisa: o cólera estava devastando o Peru, e sua chegada ao patropi era iminente. O ministro peruano da Saúde tinha ido parar no hospital devido a um peixe cru comido ao vivo na televisão - e o telespectador brasileiro ficava imaginando quais ministros brasucas mereciam sorte semelhante.
As donas de casa correram às farmácias em busca de um novo gênero de primeira necessidade, o esterilizador de saladas. Os restaurantes japoneses ficaram às moscas (mais ou menos como há duas semanas, durante a epidemia de boatos sobre o salmão) e quase foram à falência coletivamente.
Pois bem. Com toda a atenção voltada para o cólera, acabamos não reparando numa outra doença que insidiosamente foi se alastrando por toda a população. Naquela época ainda eram poucos os que sofriam desse mal - talvez muitos fossem apenas portadores assintomáticos. Hoje, não. Hoje pode-se dizer que se trata de um dos maiores problemas de saúde pública do país.
Estou falando da epidemia do "com certeza".
Confesse: você também está contaminado. A todo momento, sem nenhuma razão especial, você solta um "com certeza" como resposta afirmativa para qualquer coisa. É incontrolável. Você tomou café-da-manhã hoje? Com certeza. Lula vai discursar de improviso? Com certeza. Os juros vão continuar subindo? Com certeza.
Diferentemente de outras doenças de linguagem, o vírus do "com certeza" não foi espalhado por nenhuma novela ou campanha de publicidade. Nunca foi bordão de programa humorístico, nem frase célebre de algum político imexível. A única pessoa pública a usar o "com certeza" como marca registrada é a apresentadora Leda Nagle - mas um talk show diurno na TVE é pouco para que ela seja apontada como a única culpada. O "com certeza" simplesmente pegou.
Até antes da epidemia do "com certeza", os brasileiros tinham o maior repertório de respostas afirmativas do planeta:
- É.
- Foi.
- Vamos.
- Posso.
- Recebeu.
- Anrã.
O leque de possibilidades era tão grande que raramente a gente lançava mão da resposta afirmativa dos sem-imaginação, o "sim". Para que falar "sim" se a gente podia responder "gostei", "fui" ou "quero"? Mas agora isso é passado. Porque só sabemos responder "com certeza".
Se isso pelo menos fosse um sinal de que temos alguma certeza de qualquer coisa, tudo bem. Mas continuamos sem certeza de nada. Oitenta por cento dos "com certeza" que saem de nossa boca são puro chute. Vai chover amanhã? Com certeza. O trânsito está livre? Com certeza. Dá para chegar até a próxima cidade com essa gasolina? Com certeza.
Ainda não se sabe como o "com certeza" atua no cérebro - desconfia-se que se instale no sistema nervoso parassimpático, controlando todos os músculos involuntários -, mas existe o temor de que, dentro de poucos anos, o "com certeza" se transforme na única resposta que sejamos capazes de dar para qualquer pergunta.
- Você prefere os ovos fritos ou mexidos?
- Com certeza.
- Para onde você vai depois de amanhã?
- Com certeza.
- Qual é o seu nome?
- Com certeza.
Antes de isso acontecer, com certeza, já teremos perdido para sempre a palavra "não" - substituída, é claro, pela locução "sem certeza".

Postado por 

Nenhum comentário:

Postar um comentário