Assistindo ao noticiário sobre o início do feriado lembrei de uma crônica do grande Luís Fernando Veríssimo.
- De quê?
- Framboesa, limão e laranja.
- Caramelo não?
- Azedinha e chiclé. E vamo lá que tem gente buzinando atrás.
- É. Essas buzinas estão me dando dor de cabeça. Vai comprimido mesmo.
- Fontol ou aspirina?
Mas um dia chegará o
Grande Engarrafamento. Provavelmente em São Paulo, onde tudo chega primeiro.
Ninguém conseguirá mover seu carro, nem pra a frente, nem para trás. Abrir as
portas para abandonar o carro já será difícil. E eles serão abandonados. Haverá
cenas tocantes de desconsolo e desespero.
Engarrafamento
Espere até o pedágio
na ponte passar - como fatalmente passará - para Cr$ 17,20. Aí sim você verá
engarrafamentos.
- Não tem troco, meu camarada. Aceita comprimido?
- Bala, tem?
- Só azedinha.- Bala, tem?
- De quê?
- Framboesa, limão e laranja.
- Caramelo não?
- Azedinha e chiclé. E vamo lá que tem gente buzinando atrás.
- É. Essas buzinas estão me dando dor de cabeça. Vai comprimido mesmo.
- Fontol ou aspirina?
A verdade é que
brasileiro gosta de engarrafamento. Diz que não gosta mas adora. Brasileiro tem
a volúpia do entrave. Tudo o que fluir muito rapidamente, sei lá, não parece natural.
Essas invenções estrangeiras, free-ways, pistas de alta velocidade, viadutos,
elevados... tudo muito frio e desumano, contra a índole do brasileiro. O que
falta a Brasília para se tornar a Capital legítima do país é o cruzamento. Dois
ou três bons engarrafamentos por dia para ativar o espírito e prevenir contra a
indolência e a fantasia - hábitos desaconselháveis tanto para quem está guiando
os destinos da Nação como um automóvel - e tudo bem.
O engarrafamento
provocao que há de pior e melhor no caráter brasileiro. as brigas, as
xingações, a prepotência, a lei do mais peitudo, as buzinas que tocam Odair
José... E a conciliação, o acordo de emergência, as pequenas concessões da
vaidade. Enfim, o jeito. Como as filas são a vida social dos pobres, os
engarrafamentos são os grandes acertos da classe média. No engarrafamento os
motoristas brasileiros purgam a sua culpa por terem mais carros do que deviam e
ao mesmo tempo estabelecem uma détente pára-lama com pára-lama, para a
sobrevivência. Se o trânsito fosse livre eles só se encontrariam na batida.
Trafegariam com excesso de culpa. Ou com culpa nenhuma, que é mais perigoso
ainda. Não haveria o grande ritual da expiação coletiva.
- Meu Dodgezinho! Minha vida! um 71. Na flor da idade! Quero
ficar aquí e apodrecer junto com ele. Larguem-me!
Mas eles serão
abandonados. De vez em quando famílias inteiras virão visitar a velha Rural ou
colocar flores sobre a capota do Volks, e lembrarão seus momentos felizes. E
com o passar dos anos acontecerá o seguinte: uma população marginal ocupará,
pouco a pouco, os veículos parados. Os que chegarem primeiro pegarão os
Galaxies, os Mavericks, e as Veraneios. Os mais empreendedores ocuparão os
ônibus e sublocarão espaço até no corredor. E não demora aparecerão anúncios
nos jornais:
Opala 4 portas aluga
banco de trás para rapaz solteiro. Saída independente.
Kombi tem lugar para
família pequena. Cachorro não.
Alugo conjunto: Alfa-Romeo
e Chevette conjugados. Banheiro é atrás num Renault em boas condições.
Limousine preta. Para
família de fino trato. Revestimento em veludo gris. Bar e telefone. Pertenceu a
diplomata. Restos de charuto no cinzeiro incluídos no preço. Bateria ainda
funciona. O chofer também foi abandonado e aceita trabalhar como porteiro ou
mordomo. Dependências para empregados no Corcel ao lado. Perto de ônibus
escolar e de ambulância.
Um dia chegará o
Grande Engarrafamento. E as pessoas farão fila para assistir.
Nenhum comentário:
Postar um comentário