A ARMADILHA
Murilo Rubião
Alexandre Saldanha
Ribeiro. Desprezou o elevador e seguiu pela escada, apesar da volumosa mala que
carregava e do número de andares a serem vencidos. Dez.
Não demonstrava
pressa, porém o seu rosto denunciava a segurança de uma resolução irrevogável.
Já no décimo pavimento, meteu-se por um longo corredor, onde a poeira e
detritos emprestavam desagradável aspecto aos ladrilhos. Todas as salas
encontravam-se fechadas e delas não escapava qualquer ruído que indicasse
presença humana.
Parou diante do
último escritório e perdeu algum tempo lendo uma frase, escrita a lápis, na
parede. Em seguida passou a mala para a mão esquerda e com a direita
experimentou a maçaneta, que custou a girar, como se há muito não fosse
utilizada. Mesmo assim não conseguiu franquear a porta, cujo madeiramento
empenara. Teve que usar o ombro para forçá-la. E o fez com tamanha violência
que ela veio abaixo ruidosamente. Não se impressionou. Estava muito seguro de
si para dar importância ao barulho que antecedera a sua entrada numa saleta
escura, recendendo a mofo. Percorreu com os olhos os móveis, as paredes.
Contrariado, deixou escapar uma praga. Quis voltar ao corredor, a fim de recomeçar
a busca, quando deu com um biombo. Afastou-o para o lado e encontrou uma porta
semicerrada. Empurrou-a. Ia colocar a mala no chão, mas um terror súbito
imobilizou-o: sentado diante de uma mesa empoeirada, um homem de cabelos
grisalhos, semblante sereno, apontava-lhe um revólver. Conservando a arma na
direção do intruso, ordenou-lhe que não se afastasse.
Também a Alexandre
não interessava fugir, porque jamais perderia a oportunidade daquele encontro.
A sensação de medo fora passageira e logo substituída por outra mais intensa,
ao fitar os olhos do velho. Deles emergia uma penosa tonalidade azul.
Naquela sala tudo
respirava bolor, denotava extremo desmazelo, inclusive as esgarçadas roupas do
seu solitário ocupante:
— Estava à sua espera — disse, com uma voz macia. Alexandre
não deu mostras de ter ouvido, fascinado com o olhar do seu interlocutor.
Lembrava-lhe a viagem que fizera pelo mar, algumas palavras duras, num vão de
escada.
O outro teve que
insistir:
— Afinal, você veio.
Por instantes,
calaram-se. Preparavam-se para golpes mais fundos ou para desvendar o jogo em
que se empenhavam.
Alexandre pensou em
tomar a iniciativa do ataque, convencido de que somente assim poderia desfazer
a placidez do adversário. Este, entretanto, percebeu-lhe a intenção e
antecipou-se:
— Antes que me dirija outras perguntas — e sei que tem
muitas a fazer-me — quero saber o que aconteceu com Ema.
— Nada — respondeu, procurando dar à voz um tom despreocupado.
— Nada?
Alexandre percebeu a
ironia e seus olhos encheram-se de ódio e humilhação. Tentou revidar com um
palavrão. Todavia, a firmeza e a tranqüilidade que iam no rosto do outro
venceram-no.
— Abandonou-me — deixou escapar, constrangido pela vergonha.
E numa tentativa inútil de demonstrar um resto de altivez, acrescentou: — Disso
você não sabia!
Um leve clarão passou
pelo olhar do homem idoso:
— Calculava, porém desejava ter certeza.
Começava a escurecer. Um silêncio pesado separava-os e ambos
volveram para certas reminiscências que, mesmo contra a vontade deles, sempre
os ligariam.
O velho guardou a arma. Dos seus lábios desaparecera o sorriso irônico que conservara durante todo o diálogo. Acendeu um cigarro e pensou em formular uma pergunta que, depois, ele julgaria, desnecessária. Alexandre impediu que a fizesse.
Gesticulando, nervoso, aproximara-se da mesa:
— Seu caduco, não tem medo que eu aproveite a ocasião para
matá-lo. Quero ver sua coragem, agora, sem o revólver.
— Não, além de desarmado, você não veio aqui para matar-me.
— O que está esperando, então?! — gritou Alexandre. —
Mate-me logo!
— Não posso.
— Não pode ou não quer?
— Estou impedido de fazê-lo. Para evitar essa tentação, após tão longa espera, descarreguei toda a carga da arma no teto da sala.
Alexandre olhou para cima e viu o forro crivado de balas. Ficou confuso. Aos poucos, refazendo-se da surpresa, abandonou-se ao desespero. Correu para uma das janelas e tentou atirar-se através dela. Não a atravessou. Bateu com a cabeça numa fina malha metálica e caiu desmaiado no chão.
Ao levantar-se, viu
que o velho acabara de fechar a porta e, por baixo dela, iria jogar a chave.
Lançou-se na direção
dele, disposto a impedi-lo. Era tarde. O outro já concluíra seu intento e
divertia-se com o pânico que se apossara do adversário:
— Eu esperava que você tentaria o suicídio e tomei precaução
de colocar telas de aço nas janelas.
A fúria de Alexandre
chegara ao auge:
— Arrombarei a porta. Jamais me prenderão aqui!
— Inútil. Se tivesse reparado nela, saberia que também é de aço. Troquei a antiga por esta.
— Gritarei, berrarei!
— Não lhe acudirão. Ninguém mais vem a este prédio. Despedi
os empregados, despejei os inquilinos.
E concluiu, a voz baixa, como se falasse apenas para si mesmo:
— Aqui ficaremos: um ano, dez, cem ou mil anos.
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