Dez anos após sua morte, Itamar Assumpção permanece original e atrai novos ouvintes
Arrigo Barnabé, Paulo Lepetit e outros parceiros musicais relembram a obra do ícone da vanguarda paulista
por ALINE OLIVEIRA
12 de Junho de 2013 às 08:10
12 de Junho de 2013 às 08:10
“Eu só vou fazer sucesso depois de morto.”
Itamar Assumpção era consciente. Ou, pelo menos, parecia ter noção das consequências das decisões que tomou ao longo da carreira. A frase, dita por ele ao baixista e amigo Paulo Lepetit nos anos 1970, soou estranha na época. Exatos dez anos após sua morte, ocorrida em 12 de junho de 2003, ela faz todo o sentido.
O artista, um dos mais representativos da vanguarda paulista – movimento cultural que aconteceu na cidade de São Paulo entre o final dos anos 1970 e o começo da década de 1990 –, é conhecido por não ter feito concessões quando o assunto era música. Motivo pelo qual nunca aceitou convite das grandes gravadoras e só produziu discos independentes. “O Itamar teve todas as oportunidades que alguém, naquela época, poderia ter. Rejeitou por vontade própria”, diz Lepetit. “Ele tinha todo o cuidado para não deturparem o que considerava ideal, em termos artísticos”, conta a filha Serena Assumpção. As canções dele, no entanto, continuam reverberando tanto na cena alternativa como no mainstream. “A música dele é atemporal, e não me surpreende o fato de muita gente estar descobrindo agora”, opina Serena.
Se estivesse vivo, Itamar faria 64 anos em setembro deste ano, mas o câncer no intestino, diagnosticado em 1999, pôs fim à trajetória do artista inquieto e produtivo, nascido em Tietê, interior de São Paulo, e criado no Paraná. “O Itamar fazia, em média, 30 a 40 canções por ano. Dá para imaginar o quanto de canções geniais teríamos ao longo desses dez anos”, contabiliza Lepetit. A lista de intérpretes inclui Cássia Eller, BNegão, Rita Lee, Chico César, Bocato, Luiza Possi, Tom Zé, Ney Matogrosso, Zélia Duncan e o grupo Metá Metá. “Itamar é o maior cancioneiro da nossa geração. Produzia canção com maturidade e consistência”, afirma o músico Arrigo Barnabé, parceiro musical e amigo de Itamar, e outro ícone da vanguarda paulista.
Ao notar o progresso da doença, Itamar preocupou-se em organizar sua obra, regravar discos –alguns originais têm a acústica precária –, e produzir coisas novas. A reunião desse trabalho resultou no box Caixa Preta (lançando em 2010 pelo Selo SESC), composto pelos dez álbuns lançados pelo músico e por dois discos póstumos, Pretobrás II e Pretobrás III. “Não deu tempo de ele terminar, mas nós seguimos o roteiro deixado por ele. Estava tudo escrito: as coisas que ele gostaria que acontecesse e a forma como deveriam acontecer. Aos poucos, fomos organizando”, conta Serena, se referindo tanto à Caixa Preta, quanto a outros projetos, como o livro Canções e Histórias de Itamar – Por que que Eu Não Pensei Nisso Antes, publicado em 2006.
Nego Dito
Quem conviveu com Itamar Assumpção não se impressiona com o fato de ele ter deixado recomendações do que deveria ser feito com sua obra. Sempre foi assim. Com o primeiro disco,Beleléu, Leléu, Eu (1980), “ele já tinha tudo na cabeça (linguagem, concepção, linha do baixo) antes de entrar em estúdio”, conta Lepetit.
Quem conviveu com Itamar Assumpção não se impressiona com o fato de ele ter deixado recomendações do que deveria ser feito com sua obra. Sempre foi assim. Com o primeiro disco,Beleléu, Leléu, Eu (1980), “ele já tinha tudo na cabeça (linguagem, concepção, linha do baixo) antes de entrar em estúdio”, conta Lepetit.
Para gravar as canções, o artista – que já tinha se mudado para SP na segunda metade dos anos 1970 a convite do amigo Arrigo Barnabé – chamou alguns músicos e deu as direções. “Nós tocamos as ideias dele, já estava tudo determinado”, relembra o guitarrista Jean Trad, que gravou “duas ou três músicas” do disco.
Já neste primeiro álbum, encontram-se grandes sucessos de Itamar, como “Nego Dito” (do refrão: “Meu nome é Benedito João dos Santos Silva Beleléu/ Vulgo Nego Dito, Nego Dito cascavé”), “Fico Louco” e “Se Eu Fiz Tudo”. Além de compor, Itamar tocava baixo, instrumento sempre marcante em suas músicas.
Só depois de ter o disco pronto, ele montou a banda Isca de Polícia – e sim, o nome tem tudo a ver com o fato de ele se considerar um chamariz para as autoridades. (Itamar foi preso por cinco dias em Londrina, enquanto esperava um ônibus, acusado de ter roubado o gravador emprestado que carregava). “Acho que todos nós éramos isca”, comenta o guitarrista e jornalista Luiz Chagas (pai da cantora Tulipa Ruiz), referindo-se aos artistas da vanguarda, que tiveram seu auge em meio ao período ditatorial.
Paulo Lepetit, Jean Trad, Luiz Chagas, o baterista Marco da Costa e as cantoras Vange Milliet e Susana Salles são, até hoje, a Isca de Polícia. A banda, que acompanhou Itamar durante boa parte da carreira dele, mudou a formação ao longo dos anos. Quem está desde 1981 é o baixista Lepetit. “Acho que tiveram dois baixistas antes de mim, mas depois que entrei não trocou mais”, conta.
Os primeiros shows de Itamar com a Isca foram para divulgar as canções de Beleléu, Leléu, Eu. Todos relembram os inúmeros ensaios, que levavam horas e eram quase diários. “No começo, a gente era intérprete. Como o Itamar sabia tudo que queria, a gente tinha que entender o que ele pedia. Só depois, à medida que fomos nos ambientando, começamos a interferir e propor coisas”, rememora o baixista. No segundo álbum, Às Próprias Custas S/A (1981), “a gente consegue ver que a banda já está bem integrada”, opina Vange Milliet.
“Com o passar do tempo fomos adquirindo mais autonomia. Além disso, quando Itamar conheceu o Paulo Leminski e a Alice Ruiz, houve uma mudança na forma de ele compor. Ele se influenciou muito pelas poesias deles”, lembra Lepetit. “Itamar dizia que poetas éramos nós, e nós o chamávamos de ‘Grande Poeta Não’, brincando e parodiando um de seus versos”, conta Alice, poetisa e viúva de Paulo Leminski. “Creio que a influência foi mútua, pelo menos de minha parte, pois assim como eu posso tê-lo influenciado poeticamente, ele me influenciou como letrista.”
Itamar e Leminski conviveram por seis anos (o poeta curitibano morreu em junho de 1989), e essa parceria rendeu cinco músicas (poemas de Leminski musicados por Itamar), dentre elas “Dor Elegante”, uma das mais conhecidas. “Comigo foi diferente. O Itamar começou musicando poemas meus, mas logo comecei a escrever letras propriamente ditas para ele. Além disso, passamos a criar juntos, uma frase minha provocava uma linha melódica nele e essa linha melódica me levava a continuar a letra. Enfim, criamos de várias formas em conjunto, nesses vinte anos de convivência, e fizemos em torno de 30 canções”, diz Alice, que elege a canção “Tudo ou Nada” como a que mais representa a parceria da dupla. “Brincávamos que era o nosso hino”.
Shows
As apresentações de Itamar sempre foram um show – no melhor sentido da palavra. A começar pelo figurino nada convencional que ele usava no palco. Fora isso, o artista, que já tinha feito teatro, prezava por apresentações cênicas, cheias de improviso. Vange Milliet relembra que “ele não gostava de fazer cover de si mesmo. Então, cada apresentação era diferente da outra. Os arranjos nos shows já eram totalmente diferentes dos discos que tinha lançado”.
As apresentações de Itamar sempre foram um show – no melhor sentido da palavra. A começar pelo figurino nada convencional que ele usava no palco. Fora isso, o artista, que já tinha feito teatro, prezava por apresentações cênicas, cheias de improviso. Vange Milliet relembra que “ele não gostava de fazer cover de si mesmo. Então, cada apresentação era diferente da outra. Os arranjos nos shows já eram totalmente diferentes dos discos que tinha lançado”.
A improvisação começava muito antes. “Na passagem de som, ele chegava e dizia: ‘Olha, fiz uma música nova aqui e nós vamos tocar hoje à noite’. A gente tinha que saber improvisar, porque tudo podia acontecer. Não dava para ser um músico que só lê partitura. De repente, ele descia na plateia e ficava horas conversando com sei lá quem, e você ia fazer o quê?”, fala a cantora. Itamar tinha o costume de descer do palco – durante a apresentação das músicas – e abordar a plateia. “Tudo que o Itamar fazia tinha originalidade. Ele fazia teatro em Londrina e trouxe isso para os shows. Fiz muitos shows com ele pelo Brasil e nós gostávamos muito de propor uma irreverência”, relembra Barnabé.
Outra atitude precursora de Itamar foi dar destaque às mulheres. Em seus shows, não havia nenhuma backing vocal, mas, sim, cantoras expressivas. “Nas apresentações, a gente dialogava com ele, tinha esse lado meio cênico também”, conta Susana Salles. Em muitos shows é possível notar que as cantoras de Itamar chegavam a interpretar músicas inteiras sem a participação dele, que podia estar andando pelo palco, ou na plateia, conversando com alguém.
O universo feminino foi a válvula de escape para Itamar quando ele brigou e rompeu com a Banda Isca de Polícia. No início dos anos 1990, o artista criou as Orquídeas do Brasil (Itamar tinha paixão pela flor), banda formada só por mulheres. “Com as Orquídeas, ele voltou a 'tomar as rédeas' das coisas, o que não acontecia mais com o pessoal da Isca”, conta Vange, que também fez parte das Orquídeas do Brasil. Com elas, Itamar gravou três discos, a trilogia Bicho de Sete Cabeças. O desentendimento com o pessoal da Isca não durou muito e eles voltaram a fazer shows e discos juntos. Mas o último show de Itamar, em fevereiro de 2003, foi com as Orquídeas.
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