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domingo, 10 de novembro de 2013

LEITURA DE DOMINGO

Formações rochosas

 Ruy Castro
Você ainda recebe ou manda beijos no coração? Até há pouco, para alguns, não havia maneira mais poética de se despedir: "Um beijo no coração!". A mim, sempre pareceu que um beijo no coração deve ter algo de viscoso e grudento, mesmo que aplicado numa mesa de cirurgia por uma enfermeira loura e decotada. Outra mania é a das pessoas que dizem "Inté!" em vez de "Tchau!". Conheço uma socióloga paulista que diz "Inté!". Tem pós-doutorado em Harvard.

Se alguém lhe prometer "Vou dar o meu melhor", pode saber que o melhor do cavalheiro não será suficiente e você fará bem em procurar outro. Idem se ele lhe contar que "apostou todas as fichas" em alguma coisa. Claro que ele vai se dar mal --só um bobo aposta todas as fichas de uma vez. E, se o mesmo sujeito disser que "ligou o sinal de alerta", é porque a vaca dele já foi para o brejo e ele está apenas querendo ganhar tempo.

E a nova praga "Como se não houvesse amanhã"? Rezam os sites de fofocas: "Entre um capítulo e outro das gravações da novela, Maricotinha foi vista tomando sol no Leblon, como se não houvesse amanhã". É mentira - sempre haverá amanhã, e ai de Maricotinha se não voltar ao Projac para trabalhar. E o projeto do Fulano que conta com o "auxílio luxuoso" do Beltrano? Se alguém está prestando um "auxílio luxuoso", é porque está sem projeto próprio e precisando aparecer.

"Beijo no coração", "Inté!", "Vou dar o meu melhor", "Apostar todas as fichas", "Ligar o sinal de alerta", "Como se não houvesse amanhã" e "Auxílio luxuoso" são apenas clichês -- expressões que surgem frescas, mas adquirem consistência rochosa e se pregam à língua.

Um dia, desgastam-se e somem, e já vão tarde.

Folha de S. Paulo - 04/11/2013.

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