Páginas

domingo, 3 de maio de 2015

LEITURA DE DOMINGO

Você acha a Indonésia um exemplo para o Brasil por que executou um traficante? Pense de novo.

Ana Becker

Sabe o que eu achei mais engraçado nessas discussões que rolaram com pessoas se colocando como verdadeiros ~especialistas~ em Indonésia no caso do brasileiro executado por tráfico de drogas? O aplauso à correção e ao cumprimento das leis naquele país. Eu morei na Indonésia, e o pouco que eu sei e aprendi por lá é suficiente para achar essa ideia absurda.

“A Indonésia sim que é um modelo de correção e cumprimento às leis. Lá os criminosos não ficam impunes.” - Frase repetida milhares de vezes nos últimos dias por conta do fuzilamento de Marcelo Archer.
É mesmo?

Em uma das minhas entradas no país tive que dar meu telefone para o agente da imigração, que ameaçou retê-lo caso eu não liberasse o número. Vários amigos tiveram bolsas abertas na salinha da imigração. “Ah, brasileiro? Meu filho adora futebol. Vai gostar muito dessa camiseta do Ronaldo”. Pegavam, numa boa, e saíam fora. São muitas as histórias.

A corrupção é tão institucionalizada que, quando tu tá por lá, tu enxerga ela todos os dias. To-dos.

Diversas vezes me aconselharam a sair de casa com uma quantia mais significativa de dinheiro pra “caso a polícia encrencar contigo”. E aí tem gente aplaudindo a Indonésia como um país ~que cumpre as leis e mostra como é que é quando alguém não as cumpre~.

Tentei muito sem sucesso expor esse ponto de vista em uma discussão nesse fim de semana. A lei sobreposta à vida dessa forma, sem questionamento, sem crítica, soberana apenas por ser lei acaba legitimando qualquer loucura?—?desde que seja proveniente de um legislador. “É lei”. Sim, é lei e é ótimo que as leis sejam cumpridas, mas tem tanta coisa ruim que se pode fazer dentro da lei…

Me disseram, também, que “as leis de um país refletem a cultura daquele país e a vontade das pessoas”.

Não sei o que é mais ingênuo: realmente acreditar que as leis refletem a vontade do povo ou crer que elas estão acima do bem e do mal pelo simples fato de serem leis.
Quando eu morava na Malásia, um morador do meu prédio me quis presa. O motivo: um amigo meu me encontrou no saguão. Ele chorava, desesperado, com um problema pessoal. Eu abracei o guri pra consolá-lo. Um abraço, e o cara me queria na cadeia. As leis, as interpretações das pessoas, os absurdos.

Que mal eu causei com um abraço? Feri a moral & os bons costumes de uma sociedade majoritariamente muçulmana que acredita que isso possa ser uma afronta social.

Sem falar no fato de que ser homossexual é crime em alguns países e, por isso, se eu sou gay e tenho fascinação pelo Oriente Médio, que eu passe a vida sem conhecê-lo, porque, bueno, gosto de meninas? Você acha que gays devem levar chibatadas pelo fato de serem gays? Não faz nem um pouco de sentido.

Minha intenção aqui é só agregar uma única coisa ao debate: não, a Indonésia não é nenhum tipo de exemplo de correção (e mesmo se fosse, isso não faria com que as leis de lá fossem inabaláveis pelo simples fato de serem leis).

Nota da Redação: Este texto é de autoria de Ana Becker e foi publicado originalmente no site medium.com em 19 de Janeiro de 2015. Nesta terça-feira, 28/04/2015, o brasileiro Rodrigo Gularte, de 42 anos, também foi executado na Indonésia.

Nenhum comentário:

Postar um comentário