No dia 24 de Março de 2013, publicamos aqui no TOA, um pequeno texto em comemoração aos 40 anos do Dark Side of the Moon, do PinkFloyd. Recebemos agora belo texto de um leitor também falando sobre Dark Side.
Ei-lo:
Alguém, como está em “Eclipse”, que “ama”, “toca”, “sente” etc, mas que percebe, um minuto antes de o disco acabar, que tudo o que ele está fazendo é feito no meio de um sistema cósmico em harmonia (“in tune”), e que mesmo esta harmonia não impede que o sol seja às vezes encoberto pela lua.
Depois do Dark Side, a fórmula será mantida, mas sem o mesmo sucesso. Desconfio que depois o conceito seja mantido mas fique faltando a descrição. Claro que, criativo, o Roger Waters sempre dará um jeito (Animals, The Wall e Final Cut serão exemplos contundentes deste esforço; Wish You Were Here e Radio Kaos são exemplos menores). Mas, estruturalmente, sempre fica faltando alguma coisa. Alguma coisa que nunca falta no Dark Side of the Moon.
Uma das anedotas mais verdadeiras sobre o manufacture do
Dark Side of The Moon é a seguinte: chamada pra fazer uma voz em “The Great Gig
in the Sky”, a vocalista Clare Torry entra no estúdio e encontra a banda meio
perdida sobre os rumos da canção; Nick Mason contava uma piada; Roger Waters
estava parado em um canto fumando um cigarro; Rick Wright montava uma pequena
rotina no teclado (provavelmente pensando em alguma vaga canção sobre algo como
ficar ao sol sem fazer nada). No final é Dave Gilmour quem, com alguma noção de
expediente, pede, ainda que sem muita objetividade, para a vocalista cantar
alguma coisa qualquer. Meio perdida, Clare Torry pergunta: sobre o que mesmo é
o disco??? Roger Waters, lá do fundo, a encara firme e responde: nascimento,
morte, e tudo o que vem entre os dois.
Bom, é claro que um disco com esta pretensão, planejado
conceitualmente por um dos mais pretensiosos astros do rock, deveria ser
lembrado para sempre. É porque não foi só pretensão. Seguindo – sabe-se lá se
conscientemente, planejadamente – a tradicional linha inglesa humeana,
newtoniana, darwinista, de falar de tudo dispondo de tão pouco, Roger Waters
criou a ideia central a partir da qual a banda trabalhou no álbum mais
memorável da história do rock.
De fato, Dark Side começa com nascimento. Se Roger Waters tivesse chamado “Speak to Me”
de “Speak to Me for God’s Sake!!!” não seria um exagero. Sem um único e
miserável monossílabo, “Speak to Me” “fala” simplesmente de nascimento. No Dark
Side, iconograficamente, aparece como a linha do batimento cardíaco, que cruza
as duas partes da capa. Até aqui, então, nada de genial né??? Mas os ingleses
não partem sempre do senso comum??? O que acontece é que, também como sempre,
essas introduções triviais inglesas costumam deixar perguntas pelo caminho.
Suspeito que é com essa pergunta em mente que a gente avança na faixa e ouve
“Breathe” – “respire, respire”: você nasce para que exatamente??? O que é que
vai rolar???? A resposta, britanicamente abstrata e generalizante, está toda em
“Breathe”: você vai viver, ter emoções, trabalhar (mas não pode parar de
trabalhar), e mirar bem alto; e, no meio disso tudo, você nem percebe que
avança assustadoramente em direção ao seu fim.
Mas é claro que ninguém tem o direito de ser tão abstrato
assim; antecipando essa possível objeção, o disco (ou a existência humana????)
começa prá valer. Não podemos perder a pergunta que “Breathe” acrescenta a
“Speak to Me”: Por que logo depois de nascer, e crescendo um pouquinho só,
você vai correndo em direção ao seu fim???? É impossível entender o disco, o
conceito do disco, neste momento decisivo (a transição de “Breathe” para
“Time”), sem entender quem foi seu criador conceitual, Roger Waters.
Talvez, de todos os compositores, tenha sido o que menos
enfatizou o indivíduo em sua obra; criado sem o pai, perdido para a Segunda
Guerra, sempre compreendeu o papel decisivo da história social na constituição
das pessoas. “Time” não poderia ter sido composta na Idade Média, onde o tempo
contava diferente – sem brincar com as palavras, “Time” é do nosso tempo, e
apenas de nosso tempo. Ela não trata filosoficamente (graças a Deus!!!!) da finitude humana; nela Roger
Waters aborda, com a simplicidade típica do Dark Side, da pressão social que é
exercida – cotidianamente, pacientemente – pelo tempo (social) sobre o
indivíduo. Existencialista (a existência precede a essência, na fórmula surrada
de Jean-Paul Sartre), e coerente com o conceito todo da obra, Roger Waters não
fala apenas de um indivíduo, mas de dois: a música começa com um perdulário do
tempo; na segunda metade, o perdulário, que perdeu o tiro de largada, começa a
correr, mas é tarde (sempre será, de qualquer modo), e isto – recuperando o
final de “Breathe” – apenas o aproxima da morte. Verdade que você pode dar um
tempo no meio da corrida insana na qual você se meteu, e então “Breathe
Reprise”: mas o problema é que, enquanto você descansa, a roda continua a
girar. Por que ela haveria de parar? Só se você morresse.
Que é exatamente o que não vai acontecer – ao invés, você
vai é nascer de novo: “The Great Gig in the Sky”. A anedota com a qual abri o
post poderia ser mais verdadeira ainda e o Roger Waters poderia ter explicado o
que significava sua sentença oracular: de fato, entre o nascimento e a morte,
rola muita coisa. Até um segundo nascimento. Considero impossível compreender
esta parte do disco sem o benefício da consulta à nossa cultura imagética e
fantasiosa sobre o Dark Side of The Moon. Deixe de lado todo aquele papo maluco
sobre a sincronia do disco com o Mágico de Oz; a sincronia só vai funcionar, de
todo, artificialmente; mas pelo menos uma parte funciona. Na minha experiência,
nesta música, não funcionou bem certinho – mas alguém no You Tube cortou as
franjas e fez funcionar. No filme, é a parte em que a Dorothy perde tudo (no
vendaval do Kansas); na verdade, é a parte em que a Dorothy morre. Mas vai
nascer de novo – no meio da mesma estranheza que devemos sentir quando nascemos
a primeira vez. Só que, quando nasce, a Dorothy não tem mais a companhia
familiar dos tios, dos empregados, da fazenda etc. Ela nasce num mundo de
estranhos.
E que permanecem estranhos em “Us and Them”, que carrega,
segundo o Roger Waters, a grande pergunta do Dark Side (e, segundo ele, a
pergunta fundamental para qualquer um que deseje compreender em que sentido
podemos nos considerar civilizados), que já tinha sido anunciada em “Echoes”:
em que sentido podemos nos considerar, dada toda esta estranheza no contato,
seres humanos? Aqui, é preciso dizer, o rumo poético da narrativa de Waters se
perde consideravelmente: o foco da música (recuperando “Corporal Clegg” e
anunciando milhares de músicas e pelo menos dois discos inteiros) é a perda do
pai ou, para eu não parecer anacrônico, a Guerra.Um pelotão inteiro é dizimado,
mas o general continua a traçar sua linha estratégica belicista.
Sendo todos estranhos, e todos tão pouco humanos (por culpa
da sociedade), não é de se admirar que você termine (ou não, se você ler este
post até o fim) com “Brain Damage”. Não vale a pena ficar aqui discutindo se a
letra tem a ver com o Syd Barrett (o Roger Waters, numa mesma entrevista, disse
que sim e que não .....). No mínimo não vale a pena se a gente quer entender o
conceito central do Dark Side of The Moon: nascimento, morte e tudo o que vem
entre os dois. Na entrevista, Roger Waters disse que foi para o Syd Barrett, e
depois disse que foi para seu pai. Sinceramente, acho que não foi para nenhum
dos dois. Foi para o indivíduo sem nome que pontua o Dark Side do início ao
fim: você, eu, todo mundo. Até porque “tem alguém na sua mente que não é você”
(tradução interpretada). Mas quem é que está lá???
Alguém, como está em “Eclipse”, que “ama”, “toca”, “sente” etc, mas que percebe, um minuto antes de o disco acabar, que tudo o que ele está fazendo é feito no meio de um sistema cósmico em harmonia (“in tune”), e que mesmo esta harmonia não impede que o sol seja às vezes encoberto pela lua.
Minha compreensão deste maravilhoso disco que completa seus
40 anos não seria possível sem que o localizasse na tradição inglesa do
respeito teórico e conceitual ao senso comum. A fórmula “nascimento, morte e
tudo o que vem entre os dois” só pode funcionar num plano descritivo – e sobre
um indivíduo abstrato, mas compreensível e identificável. O resto é
interpretação e audição cuidadosa da cultura do Dark Side. Até ideias malucas
como a da sincronia podem ajudar.
Depois do Dark Side, a fórmula será mantida, mas sem o mesmo sucesso. Desconfio que depois o conceito seja mantido mas fique faltando a descrição. Claro que, criativo, o Roger Waters sempre dará um jeito (Animals, The Wall e Final Cut serão exemplos contundentes deste esforço; Wish You Were Here e Radio Kaos são exemplos menores). Mas, estruturalmente, sempre fica faltando alguma coisa. Alguma coisa que nunca falta no Dark Side of the Moon.
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