Páginas

terça-feira, 16 de setembro de 2014

PRIMEIROS PARÁGRAFOS INESQUECÍVEIS

"Talvez isto não fique claro ainda por muito tempo, mas o exame consciencioso dos factos que levaram aos acontecimentos principais deste relato mostra que sua primeira cena se desenrolou em data já um pouco distante, sem que ninguém então pudesse saber o que pressagiava. Deu-se num dia morno e paralisado, em que até mesmo as copas das árvores amanheceram petrificadas, um dia de soalheira. A soalheira se declara depois de uma conjugação de eventos naturais, que somente a sabedoria de uns poucos antigos conhece em sua inteireza. De repente, em meio a uma conversa sobre nenhum assunto, um deles aperta os olhos como num esforço para divisar algo longínquo, esfrega a pele dos braços e da cara, cheira o vento e comenta que, pela lua, pelo ar, pela maré, pela textura de pele e por outros múltiplos sinais, amanhã haverá soalheira. E de facto amanhã o dia nasce revestido de uma fulgência metálica meio baça que converte em azougue estagnado o mar da contracosta da ilha e embuça numa neblina translúcida os socalcos das terras fronteiras. Logo cedo, o sol se alastra no espelho das águas, trazendo um revérbero desnatural aos rostos e fazendo com que os saveiros navegando morosamente ao largo se ocultem de tempos em tempos, por trás dos lampejos dos sulcos niquelados que abrem no mar. Em terra também tudo é lento, e chega a parecer milagroso quatro andorinhas conseguirem fender velozmente o mormaço vítreo que abafa o mundo, para se evaporarem na névoa, harmonizadas como uma esquadrilha."

O Sorriso do Lagarto - João Ubaldo Rbeiro - 1989

Nenhum comentário:

Postar um comentário