SAMBA PEDE PASSAGEM
Luiz Carlos Sá
Há exatos quarenta e cinco anos atrás o recém batizado Grupo Mensagem (eu, Sidney Miller, Paulo Thiago, Marco Antonio Menezes e Soninha Ferreira) estreava no palco do Teatro Opinião, Rio de Janeiro – o que para nós equivalia à Broadway . Éramos simples coadjuvantes de um espetáculo musical chamado “Samba Pede Passagem”, idealizado e escrito por João das Neves, Armando Costa, Oduvaldo Viana Filho e Sergio Cabral, mas estávamos ao lado de Aracy de Almeida, Baden Powell, MPB4, Ismael Silva, Raul de Barros, Canhoto e seu regional e umas duas dezenas de sambistas e partideiros de raiz, em mais um delírio frutífero do incansável Grupo Opinião. Crus como um sushi, jovens como um Bourgogne, fomos literalmente lançados à presença das feras MPB da época como gladiadores no Coliseu, com a enorme diferença de que os leões eram nossos amigos, ou quem sabe, foram domados por nossa ingenuidade e vontade de aprender com aquilo que víamos no quadrilátero da arena histórica do teatro Opinião, foco de resistência cultural à ditadura - que ainda não mostrara seus piores dentes. No domingão, Pichin Plá, a diretora de produção, chegava com os envelopes de pagamento e nós achávamos que estávamos no Céu dos Jovens Artistas, recebendo para fazer a coisa que nos fazia sentir a vida em todo o seu esplendor, ou seja, tocar e cantar nossas próprias músicas para um público ávido de novidades.
No meio disso tudo – não me lembro bem, mas acho que o espetáculo durou uns três meses e acabou pela simples impossibilidade de pagar as trinta e uma pessoas que o compunham – aconteciam coisas hilárias que nós, lá de baixo dos nossos ainda não completos vinte anos, assistíamos com sentimentos que variavam do simples interesse à absoluta incompreensão do que realmente se passava.
O começo do espetáculo trazia uma entrada coletiva do elenco. Então todos nós trinta e uns nos acotovelávamos atrás da cortina e numa dessas entradas nossa primeira dama, a inefável, inimitável e insubstituível Aracy de Almeida – corram para a Wikipédia, sonsos! - soltou um formidável pum, bem ao lado da Soninha Ferreira, que por sua vez era nossa ingênua e protegida princesinha. Soninha, surpreendida pela – eh, informalidade...- de Aracy, arregalou dois belos olhos. Percebendo seu espanto, Aracy retrucou no ato:
- Tá olhando o quê, menina? Do que sai dentre as pernas eu só prendo neném!
De outra vez, o partideiro Padeirinho da Mangueira, que tocava uma percussão toda sua – faca raspando no prato de louça, acreditem - acabou quebrando uma lasca do prato e acertando a testa da Aracy, que sangrando do corte e percebendo rapidamente de onde viera a bala, atacou com fúria o pobre Padeirinho, em cena aberta:
- Ô Padeiro, enfia essa p... de prato no rabo, c...
Padeirinho da Mangueira
Essa era a Aracy. Não obstante sua discutível elegância feminina, ela recebia todas as noites na platéia a visita do General. Nós o chamávamos General, mas até hoje não sei se ele era Coronel ou Major ou o quê. Seu porte de legítimo R1 – logomarca identificativa dos militares da reserva – não negava a origem de anos de quartel. Ereto, sorridente e sempre bem disposto apesar da idade visivelmente adiantada, ele chegava cedo ao teatro, sentando-se sempre na mesma cadeira e aguardando a entrada de sua musa. Quando Aracy atacava “Feitio de Oração”, minha Noelina preferida, eu sempre arranjava um buraquinho na cortina da coxia para curtir a inesquecível expressão de enlevo do General. Um homem apaixonado é sempre uma coisa a observar. E Aracy, mulher a priori feia e desengonçada, merecia cada centímetro daquela atenção, porque ouvi-la cantar Noel era uma experiência extra sensorial. Lamento por aqueles que não viram , ou ouviram,isso. É como não ter visto Pelé jogando ao vivo.
Aracy e Vinícius
Baden Powell chegava sempre virado de noitadas, manhadas e tardadas com Vinícius de Morais, seu e nosso poeta preferido. Numa dessas chegadas ele fez com que eu me sentasse a seu lado e me ensinou a tocar e cantar “Canto de Ossanha”, que recém compusera com Vinícius naquela mesma tarde. Claro que eu tremi e a custo consegui perseguir sua harmonia, ao mesmo tempo simples e intrincada. Depois ele chamou o resto do pessoal e organizou vocais e instrumentais. Naquela mesma noite tocamos a música em primeira mão, num deslumbrante coro de trinta e uma vozes de todas as origens, do morro a Ipanema.
Baden Powell
Às vezes Baden chegava em mau estado, dormindo em pé. Nesses dias, João e Armando o colocavam num dos quatro cantos do teatro, sentado encima de um banco alto, com o violão equilibrado entre os braços. Na hora exata de sua apresentação, segundos antes do spot iluminá-lo, Armando Costa estendia uma vara comprida por trás da arquibancada da platéia e cotucava Baden, que acordava do seu cochilo e saía tocando a bachiana “Jesus Alegria dos Homens” sem errar uma nota sequer. Testemunhar esse fato me fez desistir da especialidade instrumental. Preferi permanecer como cantor e compositor a ousar chegar àquela perfeição de Baden, não sempre técnica, mas definitivamente emocional.
Hoje penso no privilégio que foi para minha vida de artista conviver com essas pessoas, fazer esses amigos, testemunhar toda uma época de efervescência cultural acontecida na segunda metade dos anos 60, antes que mergulhássemos no poço escuro da ditadura e sobrevivêssemos ao ácido dos 70, ao pó dos 80, à depressão dos 90, à poluição ambiental do fim do século e ao sabe-se lá o que mais que vier nesta nova década. E ver que apesar de tudo e além do resto, emerso da mediocridade do “pagode romântico” e movido pela espontaneidade de seus autores legítimos, o samba ainda pede passagem.
E acha.
VIDA DE ARTISTA
Luiz Carlos Sá (2011)
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