Páginas

sábado, 11 de maio de 2013

ÚLTIMO DESEJO

NANA E O ÚLTIMO DESEJO

Luiz Carlos Sá

Estou no Teatro Municipal do Rio, concorrendo ao 22o. Premio da Música Brasileira 2011, indicados que fomos (Sá, Rodrix & Guarabyra) na categoria de melhor grupo. Por sinal, já perdemos essa: Os Cariocas levaram o troféu, o que significa para nós uma derrota honrosa. Mas o espetáculo está valendo a viagem: o homenageado é Noel Rosa e começamos com Paulinho da Viola e sua filha Beatriz Faria, ele enfeitiçando a Vila com aquela indizível elegância de sempre, e depois, com a filha à altura do pai (o que é muito além do que poderia sonhar uma novata, mesmo contando com a genética), suingando o “Palpite Infeliz”. E logo em seguida, vejam só, “Feitio de Oração” com Dori Caymmi! É muito? Não. Porque agora Dori chamou Nana. E ela começou a cantar “Último Desejo”.

“Nosso amor, que eu não esqueço

E que teve seu começo

Numa festa de São João...”

Todos sabemos que Nana Caymmi é uma cantora extraordinária, timbre, técnica e emoção unidos numa combinação rara. Mas tenho a impressão de que hoje ela resolveu superar-se. A pequena - mas afiadíssima! - orquestra e o arranjo impecável ajudam Nana a navegar pelos versos únicos de Noel. Lá vai ela:

“...morre hoje sem foguete

Sem retrato e sem bilhete

Sem luar e sem violão...”

Se houvesse uma mosca voando no teatro, ela seria ouvida. O silêncio da platéia, sem um sussurro sequer naquele Municipal lotado, é quase tão deslumbrante quanto a Voz da Cantora.

“Perto de você me calo,

tudo penso, nada falo

Tenho medo de chorar...”

Quem está ficando com medo de chorar sou eu. Nos anos 50, mal passada década e meia da morte de Noel, eu era criança, nascido e crescendo na minha Vila Isabel. Comprava meus brinquedos nas Lojas Trindade, meus remédios chegavam da Farmácia Montanha, a comida vinha do então Armazém Sendas, minha escola era a República Argentina e eu brincava nas matinês carnavalescas da Associação Atlética Vila Isabel, da qual, aliás, meu pai era presidente de vez em quando. Sylvio Sá conseguia juntar seu trabalho duro e burocrático num cartório do Centro às rodas boêmias da Vila. Volta e meia chegava do batente já com a turma armada para a seresta noturna:”hoje vai ter, dizia ele. E à noite, na varanda da Major Barros 32 apartamento 201, os violões e cavaquinhos atacavam com tudo, varando a noite. Minha família toda cantava: pai, mãe, irmã mais velha, cunhado, primas... até eu tinha minha chance de subir na cadeirinha e cantar... adivinha qual era minha preferida? Isso mesmo: “Último Desejo”.

“Nunca mais quero teu beijo

Mas meu último desejo

Você não pode negar”

A essa altura aquela seletíssima platéia de músicos, compositores, maestros, arranjadores, instrumentistas, sertanejos, sambistas, roqueiros, enfim, todos os eiros, istas e ores que estavam ali a bordo de suas partituras mais ou menos sofisticadas, dos mais populares aos mais – digamos assim – sofisticados, estavam de bocas e corações abertos, mesmerizados pela espantosamente emocionante interpretação de Nana. Não ousávamos olhar uns para os outros, pois descobriríamos ali mesmo nossos segredos mais escondidos, desencavados por aquela tempestade de sentimentos que se projetava do palco. A essa altura Nana não era mais Nana, era uma espécie de médium que “recebia” Noel...

“Se alguma pessoa amiga pedir que você lhe diga

Se você me quer ou não

Diga sempre que me adora, que você lamenta e chora

A nossa separação”

Quem, se não Noel, teria a sensibilidade de pedir à ex-amada este último desejo? Lamentar o bem vivido aos amigos, para que mais amigos fossem e o mal vivido aos inimigos, para que estes mais se afastassem...

“E às pessoas que detesto

Diga sempre que eu não presto

Que meu lar é um botequim”

Nana está terminando. Seu gestual é simples, despojado, comandado apenas pelo sentimento, sem nenhuma ambição de forçar a barra, sem nenhum dramatismo extrapolado. Ela sabe mostrar a Lágrima Interior, aquela que aparece sem chorar. Sua voz grave e única ressoa por um Municipal em êxtase:

“Que eu arruinei sua vida

E não mereço a comida

Que você pagou pra mim”

O final é simples, sem nenhum rebuscamento. Nana se afasta do microfone. Depois de um milissegundo de “o que foi isso?!” o Teatro Municipal – platéia, balcões e torrinha – simplesmente explode, aos urros e aplausos. Levanto-me da poltrona, ejetado por aquela força emocional que só nos atinge em ocasiões muito, muito, especiais e urro junto com o resto do público. Todo mundo está de pé, todos estão de acordo comigo: nunca existiu um “Último Desejo” igual aquele que Nana nos mostrou.

Só não chorei ali por idiota que sou. Mas prometo aqui, de público, que no meu próximo encontro com Nana Caymmi – tomara que seja logo – vou abraçá-la com todo o meu carinho de amigo e chorar mansamente em seu ombro. Ela certamente vai me perguntar por que e eu vou dizer a ela que choro por aquelas noites de música em Vila Isabel, pelo sorriso feliz de meu ido pai, pela varanda tranquila da Major Barros, pelas vozes que não posso mais ouvir, pela alegria de poder tocar, cantar e compor e pelo jovem de vinte e seis anos que nos proporcionou – através dela – aqueles três minutos e pouco essenciais para qualquer ser que considere a música uma parte importante de sua vida.

www.luizcarlossa.com.br - 18/6/2011

Um comentário: