Um ataque à fama de bom moço de Bono
Livro acusa humanitarismo do líder do U2 de encampar discurso das elites
JOÃO MARCOS COELHO, ESPECIAL PARA O ESTADO - O Estado de S.Paulo
"A filantropia das celebridades assume muitas formas, mas, possivelmente, ninguém retrata tão bem seus delírios, pretensões e deformações quanto o líder do U2, Paul Hewson, o Bono."
The Frontman (que significa o vocalista nas bandas de rock) já tomou muita paulada da grande imprensa internacional e elogios rasgados de intelectuais de esquerda como Terry Eagleton. Estrutura-se em três partes. A primeira, "Irlanda", examina mitos e realidades das origens de Bono em Dublin e sua afirmação como símbolo artístico e operador financeiro no "boom" da economia irlandesa, que cresceu incríveis 9% ao ano entre 1996 e 2001. A segunda, "África", mostra como Bono roubou o show no Live Aid de 1985 e emergiu como o maior defensor da causa africana na política ocidental. A terceira, "O Mundo", detona "amigos" suspeitíssimos, como Jesse Helms, Tony Blair e Paul Wolfowitz, e mostra que ele fechou com os missionários contra a camisinha na África e aceitou patrocínio de um fabricante de armas.
Bono é, portanto, "o frontman ideal para um sistema de exploração imperial cuja devastação permanece tão selvagem como no passado". Numa aparição pública com George W. Bush, o presidente republicano derramou-se em elogios ao astro. Na medida em que crescia seu prestígio nos EUA, "na Irlanda era visto como figura ridícula".
Segundo uma história dublinense não comprovada, em um show do U2, em Glasgow, Bono pediu silêncio à plateia, começou a bater palmas devagar e falou: "Cada vez que bato palmas, uma criança morre na África". Uma voz gritou na multidão: "Então, porra!, pare de bater palmas".
O livro não questiona o sucesso de Bono, mas o modo como ele escolheu usá-lo politicamente. Detecta fissuras em seu prestígio: enquanto as autoridades o adoram, os grafiteiros de Dublin o esculhambam regularmente. "Como falar seriamente de uma figura que num dia encontra-se com os líderes da Grã-Bretanha, e, 24 horas depois, leva seu ex-estilista aos tribunais para reaver um chapéu? Um cara que de manhã te vende um iPod e à noite uma proposta de paz para a Irlanda?"
O New York Times trata Bono como um guru, o Guardian, como louco. Milhões de europeus o consideram um grande artista, enquanto a série de animação South Park o chama literalmente de "merda". A BBC exibe o documentário-denúncia Os milhões de Bono (em 2008), e, na noite seguinte, dedica um programa de rádio ao novo álbum do U2.
Ferida aberta. Vai ser difícil os fãs de Bono gostarem do livro. "Não sou fã nem detrator da música do U2." Confessa que até gosta do Bono cantor. Não julga se Achtung Baby (1991) é melhor do que War (1983). "Mesmo assim, seria um erro não considerar que Sunday Bloody Sunday fala da postura de Bono sobre a política irlandesa."
Ao tentar separar o idealismo do cinismo, Browne reabre a ferida. Mas alerta: "Não estou focado nas motivações de Bono, mas na sua retórica, ações e consequências. Afinal, por três décadas ele amplificou o discurso recorrente da elite, defendendo soluções ineficazes, tratando os pobres com paternalismo, 'kissing the asses' dos ricos e poderosos".
Seria idiota negar que a ação de Bono ajudou a melhorar a vida de milhões na África, como quer Browe. Por isso The Frontman é um panfleto saboroso e inteligente, mas mero libelo de opinião política. Browne não esconde isso. Até remete o leitor a um livro que chega a conclusões opostas (Bono's Politics - The Future of Celebrity Activism, de Nathan Jackson, disponível para download gratuito em www.bonospolitics.com).
Não dá pra acreditar na linguagem humanitária despolitizada nem concordar com a ferocidade de Browne. Lá pelas tantas, Browne entrega seu real objetivo: quer colocar o humanitarismo das celebridades no berço político. Está certo. Mas o caso Bono é pior. Browne quer desmascará-lo como "esquerdista", rótulo que colou na pele. Não é fácil, porque "Bono faz uma imitação plausível do ativista". Só por essa tentativa, vale ler o livro. Mesmo que você seja fã de carteirinha do U2.
Trecho do livro: "Após o encontro do G8 de 2005, onde Bono teve papel inteligente e vergonhoso,...
...o jornalista britânico George Monbiot escreveu no Guardian: Os líderes concordaram que poderiam absorver as demandas por ajuda, perdão da dívida e condições mais amenas de comércio com os países pobres sem abrir mão de nada. Eles podem usar nossas cores, falar nossa linguagem, apoiar nossos objetivos e descobrir em nossa agitação não novas restrições, mas novas oportunidades para fabricar o consenso'. Bono age em nome desse poder (...), feliz por empregar um superstar do rock falastrão com óculos de sol e blusão de couro para transmitir a mensagem, se for preciso. Não é nada pessoal, Bono, mas temo que um dos primeiros passos para as pessoas buscarem justiça de fato seja parar de comprar a mensagem que você vende".
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