'O Ciúme'
Pasquale Cipro Neto (Folha de S. Paulo)
Fui ver o show de Caetano Veloso no
último sábado, em São Paulo. Magnífico. Extasiante. Sublime. O Mestre
apresentou algumas de suas últimas primorosas obras, entremeadas por clássicos
mais "antigos".
Na letra de uma das canções que Caetano
apresentou ("Funk Melódico") há um verso contundente: "O ciúme é
o estrume do amor". Essa metáfora se relaciona com outra, também alusiva
ao ciúme (de uma letra de Vinicius de Morais): "O ciúme é o perfume do
amor". As imagens, fortes, fortíssimas, são contraditórias, embora
verdadeiras (ou não?).
Essas duas metáforas me trouxeram à
mente uma canção inteira dedicada ao tema, também de Caetano Veloso. Trata-se
de "O Ciúme", de 1987. Pungentes, melodia, versos e interpretação nos
fazem sentir na carne (como diz a própria letra) a força do ciúme como flecha
bem no meio da garganta.
Não vou reproduzir aqui a letra
inteira. Basta ao leitor entrar no site do próprio Caetano para encontrá-la (e,
também, ouvir a inesquecível interpretação). Vou ater-me a algumas passagens do
texto, que exigem do leitor/ouvinte alguns conhecimentos para a plena
compreensão: "Dorme o sol à flor do Chico, meio-dia/ Tudo esbarra
embriagado de seu lume/ Dorme ponte, Pernambuco, Rio, Bahia/ Só vigia um ponto
negro: o meu ciúme/ (...) Velho Chico, vens de Minas/ De onde o oculto do
mistério se escondeu/ Sei que o levas todo em ti, não me ensinas/ E eu sou só,
eu só, eu só, eu/ Juazeiro, nem te lembras dessa tarde/ Petrolina, nem chegaste
a perceber/ (...) Sobre toda estrada, sobre toda sala/ Paira, monstruosa, a
sombra do ciúme".
O caro leitor talvez saiba, mas não
custa lembrar que Juazeiro (BA) e Petrolina (PE) são separadas pelo Chico, ou
seja, pelo rio São Francisco. Unidas por uma ponte, são, como todas as cidades
que vivem situação análoga, rivais (aliás, "rival" vem de
"rivus", do latim; significa "regato, ribeiro, corrente de
água"). Que me diz agora o caro leitor da imagem da relação entre
Petrolina e Juazeiro como pano de fundo para o ciúme?
Caetano se vale de outro detalhe
"geográfico": o rio São Francisco nasce em Minas Gerais ("Velho
Chico, vens de Minas..."), e, como bem diz o grande poeta, "...vens
de Minas, de onde o oculto do mistério se escondeu...". Outra imagem
antológica, que adensa ainda mais os caminhos tortuosos, ocultos, indecifráveis
do ciúme. Existe algo mais misteriosamente oculto ou ocultamente misterioso do
que Minas Gerais, suas montanhas e sua gente?
Os versos finais da letra são
lapidares: "Sobre toda estrada, sobre toda sala/ Paira, monstruosa, a
sombra do ciúme". Profundo conhecedor dos meandros do idioma, Caetano não
empregou a ordem direta no último verso, que certamente empobreceria e
enfraqueceria a mensagem.
Para quem não entendeu, explico: na
ordem direta, o verso final seria "A sombra do ciúme paira
monstruosa". Será que ainda preciso explicar os belíssimos efeitos da
inversão da ordem "natural" dos termos?
Ler uma letra de música, um conto, um
poema -- uma obra literária, enfim -- exige abertura d'alma, conhecimento,
cultura, sensibilidade, noções de intertextualidade.
No próximo sábado, Caetano se apresenta
justamente em Petrolina. Desde que eu soube disso, pus-me a pensar que talvez
ele não "escape" de cantar "O Ciúme" à beira do velho
Chico. Que momento mágico será esse! Que inveja, que ciúme dos que o
presenciarão! No sábado, estarei longe, muito longe de Petrolina, mas minha
alma lá estará. Um beijo a todos que lá estarão. É isso.
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