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quarta-feira, 3 de julho de 2013

O MORRO NÃO TINHA VEZ

A origem da bossa nova é no morro e não em Ipanema, defende pesquisador

São famosas as histórias sobre encontros em apartamentos e saraus fechados que deram origem à bossa nova. E é quase impossível dissociar o ritmo surgido no final dos anos 50 da zona sul carioca, de Ipanema, Corcovado e Redentor. Mas o pesquisador Enrique Menezes, da USP, resolveu  estudar o samba e cravou em sua tese de mestrado: ao contrário do que todos pensam, há muito mais do morro do que de Ipanema na bossa nova.

Menezes se debruçou sobre a música de João Gilberto, inventor da bossa nova, para identificar as origens populares do ritmo. E o que ele percebeu é que a malandragem carioca dos anos 30 e seu samba sincopado é que são, na verdade, a origem da bossa nova - e não aquelas imagens clássicas de Ipanema, rua Nascimento Silva e os apartamentos de Nara Leão.

 Ele explica: João Gilberto foi fortemente influenciado pelo “samba sincopado” do morro, o “desencontro estruturado” em que o músico cria um segundo ponto de apoio rítmico sobre a base segura fornecida pela batucada. E o compositor baiano fez uma leitura que conseguiu aproximar o ritmo típico da marginalidade à elite, dando origem ao clássico ritmo.

“Associar a bossa nova à zona sul do Rio é uma estratégia da elite para se apropriar dessa importante criação cultural”, explica Menezes. A GALILEU foi atrás dele para entender como ele estudou o samba e está reconstruindo a origem da bossa:

Por que você resolveu investigar esse tema?

Sempre admirei muito João Gilberto como artista, e sempre tive vontade de entender melhor comentários despretensiosos como “o João Gilberto canta baixinho”, “é difícil acompanhar o ritmo do João” ou ainda “o João Gilberto é um chato”. Acredito que nos perguntarmos sobre o sentido desses comentários pode revelar muita coisa sobre João Gilberto e, de quebra, sobra a cultura brasileira.

A bossa nova sempre foi associada à elite, à zona sul carioca, aos saraus nos apartamentos. Mas sua pesquisa apontou que a base dela foi no morro. Como você chegou a essa conclusão?

É simples. Na chamada “era de ouro” do rádio no Brasil houve cantores de samba que ficaram conhecidos como “sambistas de bossa”, que estavam ligados ao universo da malandragem e do morro. O gingado malandro do corpo aparecia também no andar, no falar e no cantar, e essa é a bossa de cantores como Moreira da Silva, Jorge Veiga e Luiz Barbosa, entre muitos outros que fizeram sucesso na rádio entre os anos 30 e 50.

A “bossa nova” é um “novo” modo de interpretar esse estilo de samba. Esse novo modo, criado por João Gilberto no final da década de 50, tornou-se tão rico e culturalmente decisivo porque conseguiu percorrer todo o arco social brasileiro, do inferno da favela passando pelo confortável apartamento da elite e chegando até as principais salas de concerto do mundo. Completa assim um movimento de integração simbólica das classes pobres na indústria cultural, movimento desejado e iniciado pelos sambistas de morro que já haviam conseguido chegar até o rádio.

Associar a bossa nova à zona sul do Rio é uma estratégia da elite para se apropriar dessa importante criação cultural, e também mais um momento no qual ela cava sua própria cova, pois a bossa nova é toda feita com o 'dna' do morro, da favela, dos pretos, ex-escravos e da massa brasileira de espoliados com a qual a elite não gostaria de se misturar. A bossa nova revela em sua forma a massa preta sobre a qual a elite zona sul sempre sustentou seus caprichos.

Você fala em ‘samba sincopado’. O que é isso? E como isso se manifesta na música do João Gilberto?

O samba sincopado faz parte do universo mais geral da malandragem, ligado à bossa do sambista de morro e ao samba de breque. Seu nome vem da síncopa, um termo tradicional da música cujo significado tem algo de um desencontro entre dois pontos rítmicos, que teoricamente deviam estar juntos. No caso desse estilo de samba isso é explorado de modo estrutural: é quase um “desencontro estruturado”, e o cantor/compositor cria um segundo ponto de apoio rítmico sobre a base segura fornecida pela batucada. Complexifica assim a estrutura rítmica, dando origem a um novo jogo musical que se desenvolve entre o canto e o acompanhamento. É mais ou menos como a estrutura de um drible do Mané Garrincha. Em João Gilberto, junte-se a essa estrutura a precisão de um passe de Pelé.

Quais são os grandes sambistas do morro que influenciaram a bossa e João?

Uma das coisas mais impressionantes e pouco lembrada nessa história toda é que o morro tem muitos, mas muitos “grandes sambistas”. Onde você vai encontra vários. Trabalhando em processo colaborativo e de certa forma anônimo, o samba já constitui uma tradição sólida que vem desde o final do século XIX, na qual um grande número de instrumentistas, cantores e compositores reconhecem e desenvolvem mutuamente seus trabalhos.

 Inicialmente, são os ex-escravos recém libertos que tiveram que se virar sem a atenção do governo. Por isso, poderia escrever muitas páginas citando nomes e nomes de sambistas, tanto cantores quanto instrumentistas. Vou me contentar em lembrar apenas de mais alguns, conhecidos mas pouco ouvidos: entre os cantores, Ciro Monteiro, Geraldo Pereira e Araci de Almeida; entre os instrumentistas, o conjunto “gente do morro”, o “regional do canhoto” e os ritmistas do Estácio de Sá nos anos 20.

Dá para isolar os elementos que João Gilberto usou em sua música para identificar essa influência? Em quais músicas, por exemplo?

Podemos notar esse trabalho de João Gilberto em todas as músicas que gravou. No aspecto rítmico, a boa pergunta que se faz é “porque é difícil cantar junto com o João Gilberto?” Em linhas muito gerais, é porque ele está lidando livremente e de forma pessoal com processos de sincopação e derramamento métrico, elementos desenvolvidos pelos sambistas de bossa. Note-se por exemplos as diferenças nas gravações de Corcovado (Tom Jobim) feitas no disco “O amor, o sorriso e a flor” e “Live at Umbria Jazz”. Já o “cantar baixinho” vem de um tipo de timbragem que por uma lado está em consonância com o estilo de Mário Reis, e por outro liga-se ao fraseamento de um Orlando Silva, sem esquecer dos timbres “estranhos” como os de Adoniran Barbosa e Nelson Cavaquinho.
Mas não podemos falar simplesmente em “influências”, já que tanto no âmbito do timbre quanto no do ritmo, João Gilberto alcança um tipo de complexidade que encontra dialogo também com processos avançados da composição erudita. Não podemos reduzi-lo nem a um nem a outro.

Você diz que “João Gilberto subverte o abismo entre ricos e pobres”. Ele fez isso de maneira consciente ou foi um movimento natural que veio de seu próprio processo de composição?

A música de João Gilberto surge da análise consciente e minuciosa da “bossa” do samba criado nas favelas das capitais brasileiras em expansão. Sua interpretação adamantina multiplica a voz potente do morro nos meios industriais da cidade, devolvendo para o centro da indústria cultural – de forma analisada e refletida – a criação forte daqueles que têm sido esbulhados por essa mesma indústria. Nesse sentido, ele procura reduzir a distância entre pobres e ricos.

Entretanto, a inconsistência do arco social percorrido por João Gilberto é tão grande que chega-se à conclusão de que essa realidade não permite ser mudada de forma simbólica. Ou, dito de forma mais simples, a música não consegue reduzir efetivamente essa distancia, que segue incólume. A cisão é de tal forma engessada que, às vezes, cabe à música atuar de forma negativa: denunciar a ideologia, mas principalmente formar com ela um forte contraste, que acentue e deixe definitivamente claras as potências sociais que não encontraram sua forma real de serem potentes.

Um comentário:

  1. Associar a bossa nova à zona sul do Rio é uma estratégia da elite para se apropriar dessa importante criação cultural, e também mais um momento no qual ela cava sua própria cova, pois a bossa nova é toda feita com o 'dna' do morro, da favela, dos pretos, ex-escravos e da massa brasileira de espoliados com a qual a elite não gostaria de se misturar. A bossa nova revela em sua forma a massa preta sobre a qual a elite zona sul sempre sustentou seus caprichos.

    Que discursinho mais demagogo. Esse cara acaba de descobrir a América!

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